A ÁGUA
Uma tarde recebi um pequeno bilhete, cuidadosamente envelopado, deixado na portaria do meu consultório.
Dizia:
Minha irmã, Água, gostaria muito de conversar com você. Mas, como tem muito receio de sair à rua, gostaria de saber se você iria à sua casa, onde sente que estaria mais à vontade para uma entrevista.
Seu telefone é ********.
Ela aguarda, ansiosa, um contato seu. Acho que você poderia ajudá-la de forma mais eficaz caso fosse atendida em seu próprio ambiente. Agradeço a sua atenção. Terra.
Por alguns instantes ponderei. Não tenho o costume de ver clientes em casa, mas lá no fundo, eu já desconfiava que Água poderia ser retraída, depois do que o Fogo me contou sobre sua delicadeza e introspecção.
Bati à sua porta já no final da tarde, pois conforme combinamos em rápida conversa, ela havia me dito que não gostava de acordar cedo e costumava estar mais desperta nessa hora.
A sala estava iluminada por um belo e antigo abajur que lançava sua luz amarelada sobre diversos porta-retratos espalhados pelas peças do aconchegante aposento.
Água tinha uma aparência arredia e desconfiada e seu olhar, embora terno e suave, pousava sobre mim com receio. Assim que entrei, indicou-me um sofá e enroscou-se no que me pareceu ser sua poltrona preferida.
Por algum tempo ficamos em silêncio e seus olhos me escrutinavam numa indisfarçável sondagem. Entendi que as palavras não eram seu melhor veículo de expressão e que caberia a mim a iniciativa das perguntas.
- O que deseja de mim? Perguntei.
- Tenho muitos medos, respondeu com olhos baixos, calando novamente.
Comecei então a perguntar sobre sua infância, seus pais, seu nascimento.
Com grande esforço suas defesas começavam a ser vencidas, pois o assunto fez brilhar seus olhos claros e ela começou a contar-me.
Procurei, intencionalmente não interferir. Atenta, apenas balancei a cabeça assentindo e acompanhando a longa e rica história que brotava de sua alma delicada.
Em dado momento parecia haver esquecido minha presença, tão à vontade estava, imersa em suas memórias.
A história caminhou por sua infância e, quando começou a falar da adolescência os olhos marejaram e um soluço sacudiu seu corpo que havia me parecido tão frágil.
Uma força imensa parecia tomá-la de assalto. As mãos crispavam-se sobre as dobras do camisão que vestia e a doçura deu lugar a expressões dramáticas que acompanhavam, com revolta e ódio, o relato dos fatos que a machucaram.
Impressionada, eu assistia a uma catarse colossal que me fez lembrar os vulcões que o Fogo mencionara.
Diante de mim, a jovem delicada se transformara em puro instinto de sobrevivência. Seus medos, assim expressos, pareciam lavas flamejantes que deixavam o presídio onde haviam se escondido.
As horas escoaram e só percebi que era noite quando ela começou a flexionar as pernas e a esticar os braços, relaxando.
Lágrimas suaves trouxeram de volta a doçura àquela face antes tão tensa e avermelhada.
Devagar, levantou-se e veio para o meu lado no sofá. Estendeu o corpo, deitou a cabeça em meu colo e adormeceu.
Fiquei ali por algum tempo, pensando.
Como tinha sido traumático para ela lidar com o ímpeto do Fogo.
A dificuldade para comunicar o que sentia quase não a deixava respirar e apenas sua irmã Terra conseguiu protege-la do total isolamento.
Quão forte se tornaria o caminho de tanta delicadeza...
Um sorriso em seus lábios parecia me contar um sonho bom.
Levantei-me com cuidado para não acordá-la e cobri seu corpo com a manta que estava sobre a poltrona.
Um bilhete afetuoso sobre a mesinha encerrou minha visita.
Sem fazer barulho, fechei a porta da rua.
Na primeira lixeira do caminho me pareceu enxergar alguns medos descartados.
Quem sabe ela me buscaria para a próxima conversa?
Angela Schnoor. Rio, 14 de agosto de 2003.
Para minha amiga-irmã Marlene, cuja alma sempre será exemplo de resistência e delicada força.