ClaxtonAdelaide-wonderland
Todas as tardes ela ficava olhando por horas perdidas pela janela do quarto.
A paisagem, no antigo bairro do Cosme Velho, era especial.Em plena cidade tinha o privilégio de olhar a mata fresca e verdejante e gozar de silêncio e privacidade.
Mas, mesmo especial, não era a mata a razão dos devaneios de Clara. Ficava ali à espera, atenta, na expectativa de uma visão que, há meses, a encantava.
A mãe, que entrava quase à mesma hora com a bandeja do lanche, poderia pensar que ela estava divagando, olhando o verde, ouvindo passarinhos, enquanto fazia uma pequena pausa nos estudos.
Às vésperas do concurso para o Conservatório de música, o treino da flauta tomava quase todo o seu tempo.Ao perceber a mãe, disfarçava e nada dizia, mas estava ali à espera da menina dourada que apelidara de Raquel, lembrando um velho poema de Camões, que aprendera na escola, sobre um pastor apaixonado.
Em meio à mata, havia apenas uma construção, onde morava um senhor português, o açougueiro do bairro. A velha casa, um sobrado, tinha uma janela sempre fechada que dava vista, exatamente, para o quarto de Clara. Entretanto, em alguns momentos da tarde, enquanto tocava sua flauta, Clara era surpreendida pelo sorriso da linda menina, de belas tranças louras, que abria a janela para ouvi-la.
Aos poucos, criou-se um ritual. Ela percebeu que Raquel podia abrir a janela em horários diversos em meio à tarde, mas, coincidência ou não, sempre que ela tocava a Pavana de Ravel era certo que a menina chegaria à janela. Assim, criou-se um ritual cúmplice entre as duas garotas.
Todas as tardes o estudo incluía, obrigatoriamente, a Pavana e Clara obtinha o sorriso que a encorajava no árduo treinamento. Olhando os cabelos bem penteados da menina, o lindo e caro vestido, o delicado colar com um medalhão de ouro preso ao pescoço, Clara imaginava como seu José, o açougueiro, conseguia tratá-la com aquele esmero.
Sim, porque Raquel só poderia ser sua filha! Ele, apesar da aparência rude, parecia estar na casa dos quarenta, mas ela jamais vira outra pessoa na casa. Será que era viúvo?Mais uma razão para se interessar por Raquel. Qual seria o mistério de sua vida?
Poderia ser uma sobrinha recém chegada de além mar... Mas devia sentir-se sozinha naquele sobrado fechado durante todo o dia!Nunca vira Raquel na rua. Mas Clara também não saia à rua desde que começara a estudar para o concurso.
Passadas as provas, já em férias, Clara continua a tocar a Pavana para 'chamar' Raquel. Numa dessas vezes, furtivamente, consegue fotografar a jovem, desejando ter uma lembrança da amiga secreta.
De posse da fotografia, pede à mãe autorização para convidar a nova amiga para um lanche em sua casa, e mostra-lhe a foto.A mãe desmaia.
Clara, assustada, ajuda sua mãe a se recobrar e, aos poucos, a senhora, ainda sob os efeitos do choque, conta que aquele rosto é de uma moça que havia morado naquele sobrado logo que o açougueiro tinha chegado de Portugal.
Ela era sua mulher e, embora muito bem vestida e alimentada por ele, vivia presa entre quatro paredes por causa do ciúme doentio que o marido manifestava. Nem a janela podia ser aberta e as únicas coisas que lhe eram permitidas era ter uma fotografia da mãe, que trazia no medalhão ao pescoço, e a música que ouvia diariamente.
Um dia, num acesso de raiva, quebrou-lhe a antiga vitrola.
Depois deste fato, por tanta tristeza, diziam, havia morrido de tuberculose.E as janelas do sobrado jamais voltaram a se abrir.
Escrito por Angela Schnoor em 11 de março de 2007 – às 22h08’ – no RJ.
frase do dia:
Por maior que seja o buraco em que você se encontra, sorria, porque, por enquanto, ainda não há terra em cima!
anônimo.