Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

15.4.15

Caixas





   O senhor Lanúvio herdara riquezas de família. idoso e sem descendentes, seu pensamento era ocupado constantemente com a ideia de legar seus bens.

Apreciador da alma das pessoas e sem necessidade de prover seu próprio sustento, resolveu criar para si um laboratório de experiências que divertia seu espírito e com o qual aprendia. Abriu uma loja de caixas de diversos tipos, passou dias e dias inventando surpresas e mesmo depois de estabelecido, continuava a criar novas combinações de caixas e embalagens. Os produtos estavam dispostos com sabedoria e ardil, tinham dimensões e formas variadas, desde as mais simples e pequenas até as mais elaboradas, enfeitadas e de tamanhos grandes.

De fato a intenção dele não era a venda, mas a observação das pessoas diante de suas escolhas. Conversava com alguns de seus clientes, observava outros e assim conseguia saber mais sobre a natureza humana

Umas caixas nada continham além de odores, tanto agradáveis quanto fétidos. Em algumas, miúdas e mal acabadas, ele depositava preciosidades. Certas embalagens grandes podiam conter vazios enquanto outras estavam cheias de quinquilharias, ora valorosas, ora boas para o lixo. Para o senhor, as mais divertidas eram as que, ao serem abertas, pregavam sustos expelindo sons, projetando bonecos feios e debochados e as que espalhavam cores, luzes e encanto por toda a loja.

Em uma quina quase escondida, ele dispusera uma caixinha de madeira, incrustada com pequenas peças nacaradas, uma preciosidade aos olhos dos que conheciam o valor do trabalho artesanal. A peça, de beleza indiscutível, estava vinculada a uma história de família. Nessa, o Sr Lanúvio deixou o interior vazio, entre o desejo e o pressentimento de alguma coisa que não conseguia precisar.

Senhoras emproadas escolhiam caixas grandes e chamativas, pagavam caro por elas e pediam para embalar como presente sem ao menos perguntar ou abrir para conhecer o conteúdo. Umas estavam vazias, mas outras, e era com estas que o senhor mais se divertia, continham insetos mortos, maus cheiros e outras piadas de mau gosto.
Alguns clientes eram bastante práticos. Faziam escolhas simples baseadas no preço e no espaço para acondicionar o que pretendiam. Outros decidiam pelo tamanho, pela aparência luxuosa e ainda havia os que pareciam agir de forma displicente, impensada.

Lanúvio percebia a forte relação entre a personalidade das pessoas e as caixas escolhidas e pensara, com mais tempo, escrever um tratado sobre o assunto.

Uma tarde, uma jovem de aparência discreta e modesta entrou na loja. Como se atraída magicamente foi direto ao encontro da minúscula caixa e ficou um bom tempo com ela entre as mãos.
Atento e alerta, o senhor viu a cena se repetir semana após semana e resolveu não interferir, mas seu interesse aguçava cada vez mais.
A moça, por sua vez, nunca perguntou coisa alguma e poderia saber o preço do objeto que no fundo da caixa havia uma etiqueta com o valor da peça.
Como o custo era alto, o velho imaginou ser difícil para ela comprar o mimo, mas nada dizia e desviava o olhar para deixá-la à vontade com o que parecia ser um pensamento-desejo-sonho.  

Algo naquela jovem o atraía e intrigava. Como havia mandado instalar um grande espelho no aposento, discretamente a observava acompanhando seu interesse por aquela caixinha.

Após um mês de visitas a jovem não mais apareceu e Lanúvio, um tanto apreensivo, depositou dentro da caixa um pequeno bilhete, retirou a etiqueta, mudou o lugar de exposição e aguardou os acontecimentos, embora não conseguisse conter um pequeno sobressalto seguido de desalentado suspiro a cada moça que entrava na loja.

Algumas vezes Lanúvio se pegava pensando no que teria havido com a ‘sua menina’, como a denominou em segredo. Imaginava como ela viveria, se era , se tinha família ou trabalho. E se estivesse doente, precisando de ajuda?

O outono e seus ventos frios retirava as pessoas das ruas deixando a paisagem vazia. Foi quando a moça adentrou o estabelecimento apertando o casaco e se direcionou, rápida,  ao novo local, pegou a caixinha com as mãos enluvadas e  a revirou entre os dedos.
O coração do velho rejuvenesceu. Parou o que fazia e esperou, ansioso.
Desta vez  ela pareceu perceber a ausência do preço e abriu a caixa. Leu o bilhete e, pálida, se aproximou do balcão, dirigindo-se ao velho.
Não disse uma palavra, lágrimas ameaçavam rolar de seus olhos tristes.  Abriu a gola do casaco expondo um camafeu com o retrato de uma mulher tendo ao colo seu bebê.
Lanúvio, emocionado, identificou de imediato o rosto de sua irmã caçula desaparecida durante a guerra, cujos traços adivinhara na jovem que agora reconhecia.



Itaipava - quarta feira, 25-03-2015

2 Comments:

Blogger EDUARDO OLIVEIRA FREIRE said...

lindo angela, daria um belo filme!!!

10:34 PM

 
Blogger Angela said...

Obrigada Dudu, pela leitura.
Eu adoraria ter um conto filmado... quem sabe, um dia. Mas escrever já me dá muito prazer. Creio que deve dar a vc também, não?

3:13 PM

 

Postar um comentário

<< Home