Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

13.3.07

RAQUEL

ClaxtonAdelaide-wonderland
Todas as tardes ela ficava olhando por horas perdidas pela janela do quarto.
A paisagem, no antigo bairro do Cosme Velho, era especial.Em plena cidade tinha o privilégio de olhar a mata fresca e verdejante e gozar de silêncio e privacidade.
Mas, mesmo especial, não era a mata a razão dos devaneios de Clara. Ficava ali à espera, atenta, na expectativa de uma visão que, há meses, a encantava.
A mãe, que entrava quase à mesma hora com a bandeja do lanche, poderia pensar que ela estava divagando, olhando o verde, ouvindo passarinhos, enquanto fazia uma pequena pausa nos estudos.
Às vésperas do concurso para o Conservatório de música, o treino da flauta tomava quase todo o seu tempo.Ao perceber a mãe, disfarçava e nada dizia, mas estava ali à espera da menina dourada que apelidara de Raquel, lembrando um velho poema de Camões, que aprendera na escola, sobre um pastor apaixonado.
Em meio à mata, havia apenas uma construção, onde morava um senhor português, o açougueiro do bairro. A velha casa, um sobrado, tinha uma janela sempre fechada que dava vista, exatamente, para o quarto de Clara. Entretanto, em alguns momentos da tarde, enquanto tocava sua flauta, Clara era surpreendida pelo sorriso da linda menina, de belas tranças louras, que abria a janela para ouvi-la.
Aos poucos, criou-se um ritual. Ela percebeu que Raquel podia abrir a janela em horários diversos em meio à tarde, mas, coincidência ou não, sempre que ela tocava a Pavana de Ravel era certo que a menina chegaria à janela. Assim, criou-se um ritual cúmplice entre as duas garotas.
Todas as tardes o estudo incluía, obrigatoriamente, a Pavana e Clara obtinha o sorriso que a encorajava no árduo treinamento. Olhando os cabelos bem penteados da menina, o lindo e caro vestido, o delicado colar com um medalhão de ouro preso ao pescoço, Clara imaginava como seu José, o açougueiro, conseguia tratá-la com aquele esmero.
Sim, porque Raquel só poderia ser sua filha! Ele, apesar da aparência rude, parecia estar na casa dos quarenta, mas ela jamais vira outra pessoa na casa. Será que era viúvo?Mais uma razão para se interessar por Raquel. Qual seria o mistério de sua vida?
Poderia ser uma sobrinha recém chegada de além mar... Mas devia sentir-se sozinha naquele sobrado fechado durante todo o dia!Nunca vira Raquel na rua. Mas Clara também não saia à rua desde que começara a estudar para o concurso.
Passadas as provas, já em férias, Clara continua a tocar a Pavana para 'chamar' Raquel. Numa dessas vezes, furtivamente, consegue fotografar a jovem, desejando ter uma lembrança da amiga secreta.
De posse da fotografia, pede à mãe autorização para convidar a nova amiga para um lanche em sua casa, e mostra-lhe a foto.A mãe desmaia.

Clara, assustada, ajuda sua mãe a se recobrar e, aos poucos, a senhora, ainda sob os efeitos do choque, conta que aquele rosto é de uma moça que havia morado naquele sobrado logo que o açougueiro tinha chegado de Portugal.
Ela era sua mulher e, embora muito bem vestida e alimentada por ele, vivia presa entre quatro paredes por causa do ciúme doentio que o marido manifestava. Nem a janela podia ser aberta e as únicas coisas que lhe eram permitidas era ter uma fotografia da mãe, que trazia no medalhão ao pescoço, e a música que ouvia diariamente.
Um dia, num acesso de raiva, quebrou-lhe a antiga vitrola.
Depois deste fato, por tanta tristeza, diziam, havia morrido de tuberculose.E as janelas do sobrado jamais voltaram a se abrir.

Escrito por Angela Schnoor em 11 de março de 2007 – às 22h08’ – no RJ.

frase do dia:

Por maior que seja o buraco em que você se encontra, sorria, porque, por enquanto, ainda não há terra em cima!
anônimo.

7 Comments:

Blogger Pitanga Doce said...

Ângela, sabes que uso um espaço público e que meu tempo é contado, mas esse teu texto, apesar de longo TINHA de ser lido. Sabemos que há e sempre haverá mais coisas entre o céu e a terra...enfim! Sorte da Clara que pode fazer esse bem a Raquel. Com certeza esse bem retornará a ela.

beijos e LINDO!

8:39 AM

 
Blogger melga meiguinha said...

Mais um conto lindo Ursa querida.
Nunca tinha ouvido falar na Pavana de Ravel mas a minha música preferida é o Bolero do mesmo autor.

Que sábia a frase. Vou lembrar dela nos momentos em que estou mais em baixo.

Beijocas.

1:20 PM

 
Blogger arara said...

Eu queria uma máquina que fotografasse almas como a de Clara... Beijinhos, da 125azul , agora rebaptizada "arara"

6:54 PM

 
Blogger Pitanga Doce said...

Ao que temos que nos submeter por causa desse Google idiota! A nossa Azulinha teve que mudar de cor!

beijos e também eu estou com problemas, por isso se sair do mapa já sabes o porquê.

12:03 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Maravilhoso.

12:07 AM

 
Blogger Angela said...

Pitanga querida,
muito obrigada, fiquei intrigada como vc. julgou verdadeira uma obra de ficção! Não que as Claras da vida não possam existir e 'ajudar' a outros mas, neste caso, você escreveu como se fossem seres reais e não frutos de minha imaginação! muito interessante!
Quanto à nossa Azulinha, é claro que continua azul mas o que falta agora é postar em dois galhos, simultâneamente!
E, caso você voe também, deixe o endereço!!!

Meiguinha,
Esta Pavana de Ravel chama-se Pavana para uma infanta defunta. É linda e muito melancólica. Não coloquei o nome completo para não dar pistas ao conto.

Você pode não ter terra por cima, alguns preferem ter fogo à volta!
Mas, por enquanto é bom que agradeçamos estar vivos!

arara sempre querida,
Acho que temos esta máquina! Por vezes chama-se intuição, em outras, imaginação; mas sensibilidade é seu nome mais comum e sei que vc. a tem!
Já que teve que criar mais um ninho, ao menos ponha ovos e cante por lá, ou vai ficar assim cindida : postagens em um e comentários pelo outro?

Dudu ,
um beijo :D

1:11 AM

 
Blogger Pitanga Doce said...

Querida Ângela, há muitas Claras por aí. Muitas mesmo. E ainda bem que assim é, e se a tua imaginação te levou por esse caminho só te fez bem.

beijos de sábado

10:47 AM

 

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