Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

28.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 14

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma

Nightmare- pintura de Fuseli

Conto 14
ESPÍRITOS


Parecia conto de fadas. Sua mãe tinha uma história de infância abandonada. Quando o pai morreu, os bens foram usurpados pela madrasta, o que se transformou na diretriz de sua vida, temerosa de todas as perdas.

Ela foi criada sob o jugo de uma proteção excessiva, pois além de todos os antigos medos maternos, havia nascido prematura e mal ocupava uma pequena caixa onde era alimentada por conta gotas.

Foi crescendo sob uma camada de gordura que lhe garantia a sobrevivência e gerava a circunferência avantajada que mantinha à distância qualquer aproximação física.
Vingou, mas em sua adolescência viveu como Rapunzel, trancada na torre dos cuidados maternos. O pai vivia trabalhando e não tinha espaço disponível em casa para um contato com ela. A mãe se tornava enorme quando alguém se aproximava de “sua” cria.

O medo tornou-se maior quando o pai morreu.

Duas mulheres sozinhas! Uma cuidaria da outra sempre, não podiam perder-se.
Ao menos agora, recebendo a pensão do pai, podia comer e comprar, comprar e comer, comprar e comprar sem preocupações.

Tentou comprar um homem por quem se apaixonou. Já tinha idade bastante para perceber que ele não era muito chegado à mulheres, mas aí é que, para ela, residia o seu charme.
Estava acostumada à convivência feminina e a segurança do amor apenas espiritual a tranqüilizava bastante. Podia cuidá-lo e obter sua companhia. Preenchendo materialmente, os vazios de uma vida humilde, nada mais era exigido dela.

Tentava encantá-lo, certa de não conseguir senão uma boa companhia intelectual. Sua aparência a protegia, e justificava o distanciamento dele embora fosse, secretamente, seu martírio.
Quanto mais rejeição, mais compras e comidinhas. Quando a conta no banco se esgotava... ansiedade, memória, perda, caixa de papelão, conta-gotas... mais comida....até que o dia de pagamento chegasse e a pensão do papai colocasse, temporariamente, a segurança em ordem.

Continuava virgem para o prazer da mãe que fingia não ver as revistas pornô guardadas e os gemidos noturnos na cama ao lado.

O “amigo” adoeceu e faleceu com uma doença estranha, sem que o amor se consumasse.
Após sua morte, ela começou uma busca espiritual intensa. Andou por terreiros, cartomantes e tentou todas as esoterices do momento para preencher seu vazio, até que encontrou - se com “as moças”.

Eram duas, davam aulas sobre extraterrestres, espaçonaves, terceiro milênio e “recebiam” espíritos de Mestres que prometiam iluminação e salvação das catástrofes previstas para aqueles que não acreditassem e não reverenciassem suas ordens e desejos.
As sessões aconteciam em sua pequena casa. A mãe, a princípio, participava mas aos poucos, foi sendo alijada como de pouca fé. Com o tempo, as duas foram ficando, ficando, e ela comprando, comprando... coisas para a casa, roupas e livros para as moças e comida especial para os Mestres que se tornavam cada vez mais presentes e exigentes. Em troca, “baixavam” no corpo das duas dando a ela toda a atenção desejada. Fazia confidências e recebia conselhos.

Um dia, sob a orientação dos “Mestres”, resolveu internar a mãe num asilo. Estava velha e doente, implicava com as moças. e reclamava quando sua parte da pensão tinha que cobrir os gastos, adicionais, com os “Espíritos”.

Na primeira noite sem a mãe, os Mestres baixaram enquanto ela dormia e cobriram de prazer seu sexo adormecido.

Hoje, ela vive com “Eles”. Nada compra, passou sua conta bancária para “as moças” e nunca mais engordou pois come praticamente, de conta-gotas.


©Copyright ANGELA SCHNOOR

2 Comments:

Blogger 125_azul said...

Ora todo mundo se arrumou e cada um é feliz à sua maneira, menos, garantidamente a mãe. Vidinha de bosta a da mamãe, desde que nasceu. Conto de fadas mesmo, madrasta,perdas, quase feliz para sempre e prisioneira no asilo/torre no fim. Adorei, mas é redundância, né?

11:19 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Acho que não entendi o que disse. A mãe, de fato, está viva até hoje, embora já esteja senil e, portanto, isolada.
Nós sempre nos gostamos muito e sinto muito por tudo que passou e passa.
Embora esta história tenha algo de ficção tem também muita realidade.
Neste caso me sinto como uma das prejudicadas por tantos "espíritos"!

6:06 PM

 

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