Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

28.8.06

Saúde mental - Rubem Alves


Rubem Alves - saiba quem

"Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei.

Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia.Eu me explico.Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se.Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.

Pensar é uma coisa muito perigosa... Não, saúde mental elas não tinham... Eram lúcidas demais para isso.Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata.Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental.Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvir falar de político que tivesse depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio". Hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes. Nós também temos um hardware e um software.

O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.
Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software.Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam.

Não se conserta um programa com chave de fenda.Porque o software é feito de símbolos e, somente símbolos, podem entrar dentro dele.Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção!

Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio:
A música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou... Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, "saúde mental" até o fim dos seus dias.

Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes.
A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música... Brahms, Mahler, Wagner, Bach são especialmente contra-indicados. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Tranquilize-se há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago?

Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.
Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal.
Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram..."

"Sobre o tempo e a eternidade" Campinas: Ed. Papirus, 1996.
veja mais aqui

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13 Comments:

Blogger dora said...

era só para lhe deixar um abraço muito bom e feliz
( bom e feliz como a sua presença na minha "double vie" :)

6:11 AM

 
Blogger greentea said...

voltarei para ler mais ... aqui

beijinhos , que estou de volta a casa

1:09 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Se observarmos as grandes descobertas da humanidade, havia pessoas a frente do seu tempo e que eram consideradas loucas.
A "loucura" as vezes é preciso para siar da rotina. Porque se todos vivesses fechados em si mesmos dia a di, não haveria mudanças.
è o que penso.

5:09 PM

 
Blogger melga meiguinha said...

Ursa querida até parece que eu hoje devia ler este texto.

Que coisa linda!

Beijocas.

5:57 PM

 
Blogger Angela said...

Dora linda dora!
Já respondi em seu blog mas deixo aqui minha alegria por tê-la em meu cantinho!

2:04 AM

 
Blogger Angela said...

Greentea estou atrasada nas respostas mas nem tanto em te encontrar de volta! Feliz com suas férias e com o retorno relaxado!

2:05 AM

 
Blogger Angela said...

Eduardo, que vivam os loucos! abaixo os que se pensam sadios e são apenas insepultos!

2:07 AM

 
Blogger Angela said...

Meiguinha, não sei se hoje vc. devia ler este texto.Se foi assim, fico contente! Eu acho que preciso ler todos os dias para me lembrar de não acomodar. um bj. de ursamãe.

2:09 AM

 
Blogger Celso Renato said...

POR FAVOR, SÓ NÃO CONSIDERE LOUCURA COMO ATOS EXTREMOS COMETIDOS PELOS AUTORES CITADOS NO INÍCIO DO TEXTO. A LOUCURA NÃO SE LIMITA OU RESUME A ESTES ATOS EXTREMOS. ALIÁS, SUTILEZA DAQUELE QUE SE PROPÕE A LIDAR COM A LOUCURA ESTÁ NOS ATOS SILENCIOSOS DO LOUCO. AÍ SIM REPOUSA O COLORIDO.

1:23 PM

 
Blogger Angela said...

Celso r,
O texto não é meu, mas de alguém sábio e que merece respeito.
Concordo com você e imagino que seja louco ou se amante deles, como sou.
Benvindo.

3:24 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Após o trecho em que Alves diz "Brahms e Mahler são especialmente contraindicados", segue "o rock pode ser tomado à vontade". Por quê adulterar o texto do Rubem Alves?

9:33 PM

 
Blogger Angela said...

Por que fazer uma pergunta-crítica no anonimato?
De fato, desde 2006 minha vida andou, e a sua?
Respeito absolutamente os autores e não alterei o texto. Copiei aqui conforme me chegou. Nada pessoal quanto ao Rock, já que tive o privilégio de vê-lo nascer.

Viver de julgamentos equivocados, por que? pra que? de mal com a vida?
Quando e se encontrar o texto completo com esta frase farei o reparo. Talvez fosse mais produtivo citar a sua fonte.
Por agora creio que já te dei mais do que a atenção que deseja.
Passe bem.

12:40 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Obrigado pela amável resposta. Minha vida vai muitíssimo bem; ainda que não saiba em que isto possa interessar. A (minha) fonte é o próprio autor. Passar muito melhor!

1:36 AM

 

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