Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

20.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 7

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma.

foto de Jan Saudek - Tell Me, Mirror, 1978

Conto7
CORÉ

Na adolescência via a mãe, mulher forte e assexuada, trabalhando o dia todo para dar mais conforto à família enquanto o pai corria atrás das moças na rua e passava a mão sorrateira, nas curvas das jovens empregadas da casa.
Amedrontada e triste ela percebia tudo e daquele momento em diante preferiu, meio inconscientemente, não crescer nem envelhecer.


Ter uma profissão, nem pensar! Passava os dias em frente ao espelho, testando as ultimas modas em roupa e maquiagem, se esmerando nas técnicas para seduzir um homem, a fim de ser amada e protegida por ele.


Um dia casou, teve filhos, mas continuava a ser uma garotinha nos gestos, na forma de vestir e de pensar. Conforme o tempo passava, se aperfeiçoava na arte de envolver qualquer homem que dela se aproximasse.

O marido, bonachão e pouco dado ao trabalho, passava a maior parte do seu tempo na rua vivendo de expedientes, e fazia vista grossa aos casos da mulher que não deixava escapar nem os seus amigos. A predileção pelos homens mais velhos e casados era flagrante pois, provavelmente, isto a fazia mais segura de sua juventude e predicados femininos.
No íntimo, ela era infeliz, queria ser amada. Desejava um companheiro e
sentia-se sempre só, embora não conseguisse ficar um instante sem companhia. Até para ir às compras, ali na esquina, chamava alguma amiga, um filho ou a empregada.

Os filhos não respiravam sem ela, fazia tudo por eles contando que, desta forma, permaneceriam crianças, assegurando sua “juventude”.

Passada em anos continuava com seu modelo de menina beirando, quase sempre, o ridículo.

Separou-se do marido e então suas paqueras se tornaram mais abertas e já incluíam outras intenções. Os mais ricos eram os preferidos e não respeitava nem suas amigas que, aos poucos se afastavam quando percebiam os olhares lânguidos e pestanejantes atirados para seus maridos ou amantes.

Aos poucos foi ficando só. Um filho casou, outro foi estudar fora e a filha só vivia para o trabalho, temendo ficar como a mãe.

Um dia, numa festa, afastada dos grupos, ouviu um comentário: - “Como está velha!” Disse alguém.- “E ridícula,... continua a bancar a garotinha!”, completou outra voz.

Correu para o banheiro e então, se viu pela primeira vez! As lágrimas que escorriam, borrando a maquiagem, acentuavam ainda mais a verdade do que ouvira e via.

Caiu em depressão profunda. A morte chegou bem perto. Tiveram que interná-la por muito tempo.

Na clínica, aos poucos, foi melhorando.
Alem dos remédios e da psicoterapia fazia terapia ocupacional, através da qual acabou descobrindo habilidades artísticas desconhecidas. Este fato, além de apressar seu restabelecimento,abria perspectivas novas para um futuro trabalho e trouxe um sentido para sua vida.
Não mais temia o tempo e a morte.
Já conseguia ficar só e apreciava a própria companhia. A aparência também mudava: o cabelo, sem pintura, foi tomando sua cor cinza verdadeira e embelezava seu rosto, agora mais suave, com menos artifícios.

Um terapeuta acompanhava seu progresso e a ajudava no esforço de recuperação. Conversavam longas horas durante seu plantão.
Ele tinha a idade de seu filho e fazia residência na clínica, onde acompanhou seu caso desde o início.
Empenhou-se em seu tratamento com carinho e interesse desde o primeiro dia até aquele em que assinou sua alta.

A filha iria buscá-la. Arrumou-se, feliz, para voltar a casa. Vestia um terninho sóbrio e elegante, cor de terra, que realçava seus cabelos. Agora, os fios louros se misturavam aos grisalhos em discreta harmonia. Olhando-se no espelho, pela primeira vez gostava, realmente, do que via.

O jovem médico entra para despedir-se e não contem a admiração: “Como você está linda!”.
Trancando bruscamente a porta, lança-se, apaixonadamente, sobre ela que, entre surpresa e extasiada consegue, pela primeira vez, ter um orgasmo!


Copyright ANGELA SCHNOOR


3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Achei lindo.

É bom saber que, por vezes, alguém consegue ser feliz.

Beijinho.

3:17 PM

 
Blogger 125_azul said...

em louvor do orgasmo encontrado...

6:25 PM

 
Blogger Angela said...

É, pena que algumas mulheres só conseguem ser Pessoas depois de muito sofrer e solidão!
Enquanto isso são apenas Barbies!

1:14 AM

 

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