Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

16.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 4

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma.

O Tempo - Salvador Dali
Conto 4
PERSONAGEM

A infância fora plena de regras, certos e errados, deveres e obrigações.
O pai, sovina e autoritário, era figura importante nos meios políticos e comerciais.
Distante, dava as “ordens” através da mãe, mulher controladora dos filhos e submissa ao marido a quem prestava contas de tudo.

As crianças não comiam à mesa, só brincavam nos limites da casa e deviam estar cientes de sua superioridade social, jamais se misturando a vizinhos e empregados. Tinham horários para tudo, acordavam cedo, comiam pouco, faziam seus deveres e,...Nada de gulodices, principalmente fora de hora!

Sendo, naturalmente dócil e insegura, morria de medo dos castigos e, acima de tudo, não queria desagradar ao pai para não sofrer a culpa das dores maternas.
Os irmãos, sendo homens, eram paparicados pela mãe que os faria crescer inseguros e dependentes para que, quando crescessem, não pudessem subjugá-la.

Restava-lhe a solidão e a capacidade de assimilar o ambiente familiar formando uma personalidade defensivamente solícita e agradável, que escondia toda raiva, frustrações e desejos sob uma capa de superficialidade e doçura.

Muito bonita, logo cedo apareceu um pretendente aceito pela família. Era sério e ambicioso, estava no exército e, embora não fosse rico, era de boa família e prometia ser bem sucedido na carreira.

Casada, morando nas vilas militares, foi desenvolvendo o gosto pelo comando. De dia, dava ordens às empregadas, aos filhos e aos ordenanças, à noite obedecia ao marido.
Como era esperado, seu marido teve uma carreira brilhante e ela, continuava seu papel de esposa agradável e solícita, companheira para todas as horas, tendo aprendido com a mãe como tornar dependentes os temidos homens!

Com o passar dos anos foi fortalecendo a independência e a rebeldia. Não aceitava ajuda. Via em todos os que a cercavam, controladores em potencial e todo o tempo, se gabava de sua força, saúde e austeridade no comer e no viver.

Filhos crescidos, casados e distantes, (nunca tinha sido mãe carinhosa), ficou viúva. Foi voltando à solidão da infância. Procurava estar sempre na rua, pois a casa vazia lhe trazia a angustia do contato consigo mesma e, quando lá estava, a TV, o rádio ou o telefone a distraiam dos maus pensamentos.
Disfarçando sempre seus sentimentos, criava vínculos de dependência material para ter companhia. Ora era uma amiga doente, ora outra em dificuldades financeiras, ou a empregada a quem “comprava” com mimos baratos.

Tentava manter-se sempre dentro da máscara que criara.

Ia levando bem a vida apesar da idade avançada, até que uma doença grave na família e logo depois, um sério tombo em casa, iniciaram sua decadência. Ainda assim, se protegia com o eterno discurso da força e da resistência.

O medo da fragilidade e da morte era imenso.
Escondia qualquer dor ou cansaço e todos a acreditavam em pleno estado de saúde e energia porque afastava qualquer preocupação familiar, tratando-a como absurda e inconveniente.
Entretanto, a morte dos amigos fazia cada vez mais próxima a realidade de seu fim.

Foi ficando sozinha na casa onde morava. As defesas começavam a ser minadas e seu subterrâneo, com tudo que escondera, emergia. Os fantasmas povoavam suas noites mal dormidas. A primeira a perceber sua mudança foi a empregada que a deixou quando foi ofendida e agredida.

Hoje, quando alguém faz a caridade de ir visitá-la a encontra com os bolsos da camisola cheios de bombons, a boca suja de chocolate, dormitando na cadeira que range com seu balanço e repetindo sem parar :
- “Quer um doce? Eu não gosto de doces, quase não como, sabe?... Faço tudo sozinha! Hoje já passei em revista os empregados, a despensa e as latas de biscoito... Quer um bombom? Eu não gosto de chocolate, quase não como doce... e... sempre acordo cedo! Hoje, às seis eu já ouvia as notícias... Ah! Sabe quem morreu? Meu pai.
Coitadinho... Era tão bonzinho!”


©Copyright ANGELA SCHNOOR

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Bom dia.

Já li a história. Mais logo comento.

Obrigada pelas suas palavras.

Beijinhos.

7:48 AM

 
Blogger 125_azul said...

sua velhota descobriu o que postei ontem sobre o chocolate! Beijo doce.

3:20 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Do além...ela pode ver tudinho!
Um dia te conto quem foi esta triste senhora.


Ontei recebi, na secretária eletrônica, um recado hiper sedutor de uma senhora portuguesa que está por aqui. Respondi e trocamos carinhos por telefone e hoje pode ser que nos encontremos. Dou notícias da dupla,em breve!

4:10 PM

 

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