A DEUSA SOMBRIA
Hoje, a postagem em 125_azul lembrou-me este belo texto de Howard Sasportas. É extenso mas vale ser lido.
A DEUSA SOMBRIA
Perséfone é apenas uma das muitas figuras míticas que se transformaram através de uma jornada ao mundo subterrâneo.Tido como o mais antigo mito conhecido e registrado (escrito em placas de argila no terceiro milênio a.C.), a lenda sumeriana da descida de Inanna também ilustra as grandes transformações porque passamos durante a vida. Inanna, é uma deusa dos céus: é brilhante, ativa, sensual e alegre, e sua vida flui de forma relativamente suave. Mas ela tem uma irmã cruel, Ereshkigal, que vive no mundo subterrâneo e cujo nome significa literalmente “a senhora do grande lugar que fica abaixo”. A mitologia grega é comparativamente tardia e, antes dos gregos, o mundo subterrâneo era governado por uma deusa, não um deus. Nesse sentido, Ereshkigal é uma forma primitiva de Plutão.
A história começa quando o marido de Ereshkigal morre e há um funeral no mundo subterrâneo. Inanna sente-se impelida a comparecer ao funeral e fazer uma viagem pelo domínio de Ereshkigal. Ela precisa descer a um lugar do qual, na realidade, não gosta, uma região com a qual não tem familiaridade, um lugar que não é o seu mundo. Quando Inanna chega ao primeiro portão do mundo subterrâneo, Ereshkigal a recebe com o olhar sombrio e venenoso: Como te atreves a vir ao meu reino? Mesmo sendo minha irmã, eu te sujeitarei ao mesmo tratamento que todas as almas recebem quando penetram o mundo subterrâneo”. Ereshkigal está de péssimo humor e, quando se sente dessa maneira, todos à sua volta sofrem. Ela não para para considerar que Inanna veio para estar a seu lado no funeral de seu marido. Ereshkigal não está interessada em ser razoável ou justa. Ela representa a raiva global e primitiva da criança: quando está zangada ou infeliz, tudo é ruim e nada vale a pena.
Sete portões levam às profundezas do mundo subterrâneo. Ereshkigal ordena a Inanna que passe através desses sete portões, e em cada um deles a rainha do céu deve tirar uma parte de suas roupas: sua túnica, seu vestido, suas jóias - até chegar a parte mais profunda do submundo completamente nua. Aí ela é então instruída a curvar-se diante de Ereshkigal, para honrar a força que a desnudou.
Grandes transformações podem ser semelhantes a um encontro com Ereshkigal. Podemos ter que abandonar coisas através das quais temos, até agora, retirado nosso senso de identidade. Relacionamentos, empregos, sistemas de crenças, posses ou outras formas de apegos podem nos ser tirados e levados embora, ou perdem sua validade ou apelo. E ainda assim, como no mito, somos obrigados a curvar-nos diante da força que nos desnudou como se esta fosse uma deidade. Ereshkigal é uma deusa, uma deusa sombria, mas ainda assim uma deusa. É uma divindade através da qual opera uma lei mais alta e deve ser honrada como parte da vida que é. Sermos despojados de nossa identidade e de nossos apegos não é uma coisa agradável: trata-se de algo que sentimos mais como uma maldição do que como o trabalho de uma divindade. Embora possa ser difícil de compreender, Ereshkigal serve a um propósito mais elevado. Entretanto, a natureza desse propósito nem sempre fica clara de imediato.
De fato, no caso de Inanna, a situação parece piorar mais ainda. Como se desnudá-la completamente e fazê-la curvar-se não fosse punição suficiente, Ereshkigal em seguida mata Inanna e pendura seu corpo num gancho para que aí apodreça. Aquela que fora uma deusa dos céus, feliz, bela e florescente, fica dependurada no mundo subterrâneo como se fosse um pedaço de carne morta, apodrecendo pouco a pouco. Isso é o que Ereshkigal faz à irmã; e é isso que um período muito difícil de perdas e transformações pode nos fazer sentir. Podemos nos sentir banidos para um lugar onde nos sentimos podres e miseráveis, um lugar feio, nojento, depressivo, solitário e abandonado. Esses sentimentos sempre estiveram em nós, escondidos nos recessos mais escuros de nossa psique, deixados pelos traumas de infância ou por experiências passadas de vida. Podemos nos defender com sucesso contra tais estados emocionais, mas Ereshkigal encontra uma forma de fazer com que os enfrentemos.
Enquanto isso, Ereshkigal, que acaba de perder seu marido e de matar sua irmã, está dilacerada pela tristeza e pelo rancor . Também está grávida e passando por um trabalho de parto difícil. E ainda por cima, está descontente com seu papel de deusa do mundo subterrâneo. Quando criança, ela fora violentada e, por punição, banida para aquele mundo, de maneira que ainda guardava rancor pela injustiça que sofrera.
Ereshkigal não representa somente a morte e a decadência, mas simboliza também os instintos ultrajados da criança zangada, ferida e frustada que muitos de nós continuam a trazer no interior, a despeito de quanto tentamos ocultar esses sentimentos. Com Inanna morta e a vingativa Ereshkigal nas agonias de um parto doloroso, alcançamos o ponto mais triste da história. Entretanto, embora algo esteja morto, uma coisa nova esta nascendo. A morte exige um nascimento; e um nascimento exige uma morte.
Antes de empreender sua jornada pelo mundo subterrâneo, Inanna sabiamente havia instruído sua serva Ninshubar, para que a salvasse, caso não houvesse retornado do reino escuro de sua irmã em três dias. Inanna sabia que teria que entrar no mundo subterrâneo, mas sabia também que não podia ficar presa naquele mundo.
Ela quer descer a um lugar escuro, mas toma precauções que garantam que voltará outra vez para cima. Três dias se passam e Inanna não retorna, de maneira que Ninshubar, em desespero, pede socorro. Aproxima-se do pai e do avô paterno de Inanna suplicando-lhes que façam o que puderem para resgatá-la. Ambos respondem que nada podem fazer para alterar as determinações de Ereshkigal. Temos aqui duas figuras masculinas fortes que não tem poder sobre Ereshkigal, significando que a prerrogativa “masculina” da força e da capacidade de subjugar (que por sua própria natureza tentariam sobrepujar, suprimir ou combater um oponente) não é o que se necessita para lidar com a deusa sombria. Adotar uma atitude heróica contra Ereshkigal não funciona. Se tentarmos combatê-la, sua reação será mais rancorosa e feroz do que antes.
Finalmente, Ninshubar chega até um deus chamado Enki, avô materno de Inanna, conhecido como deus da água e da sabedoria. Trata-se de um deus fluido e compassivo, que compreende as leis do mundo subterrâneo. Em algumas versões do mito é retratado como um ser bissexual, ao mesmo tempo macho e fêmea: ele pode ser violento, mas também é flexível e maleável. Enki concorda em fazer o que puder para salvar Inanna. Usando sujeira que retira do vão de suas unhas, molda duas pequenas figuras, os “Lamentadores” - criaturinhas minúsculas, andróginas e discretas. Sussurrando-lhes algumas palavras de advertência, ele as manda descer ao mundo subterrâneo para resgatar Inanna. Parece ser inacreditável que essas figuras minúsculas e insignificantes consigam lidar com a poderosa Ereshkigal, mas é exatamente por serem tão pequenas é que logram introduzir-se no mundo subterrâneo sem serem vistas. Elas percorrem seu caminho sem serem surpreendidas pelo lacaio de Ereshkigal e também não precisam suportar a provação do desnudamento pela qual Inanna teve que passar.
Tranqüilamente, os dois pequenos Lamentadores, aproximam-se aos poucos de Ereshkigal e Inanna. Sua tarefa é salvar Inanna, mas eles a realizam de uma maneira muito incomum. Embora estejam ali para levar Inanna de volta, eles a ignoram completamente e concentram-se primeiro em Ereshkigal. Ao invés de repreenderem Ereshkigal pela morte de Inanna, eles optam pela comiseração em relação à deusa sombria, estabelecendo uma empatia com ela. Ereshkigal, nas dores do parto, lamenta seu destino: “Eu sou o pesar, o pesar está dentro de mim!” Os Lamentadores apiedam-se dela; “Sim, tu que choras és nossa rainha. O pesar está dentro de ti!” Então, porque odeia o fato de ser a deusa do mundo subterrâneo, ela chora: “Sou o pesar, o pesar está do lado de fora de mim!”, e eles respondem: “Sim, tu que choras és nossa rainha. O pesar está do lado de fora de ti”. Em sintonia com os princípios da terapia rogeriana da atualidade, os Lamentadores espelham o que Ereshkigal está sentindo. E fazendo-o, queixam-se e seus lamentos soam mais como uma oração ou litania. Os Lamentadores haviam sido instruídos por Enki para afirmarem a força vital, mesmo se essa se revelasse na forma de dor e sofrimento. Mesmo na escuridão e na negatividade ainda há algo a ser honrado, algo a ser redimido.
Ereshkigal está espantada. Ninguém jamais a honrou dessa forma antes. A maior parte das pessoas passa sua vida tentando evitar a dor, a escuridão e todas as coisas que Ereshkigal representa. Mas os Lamentadores aceitaram; deram-lhe graciosamente, o direito de se lamentar e de reclamar. O que efetivamente estão dizendo a Ereshkigal é: “Tu tens o direito de ser. Podes reclamar e continuar reclamando tanto quanto quiseres, e ainda assim te aceitaremos”. Ereshkigal, grata por esse tipo de reconhecimento, quer recompensar os Lamentadores e oferecer-lhes qualquer coisa que desejarem. E eles lhe pedem que Inanna seja devolvida. Ereshkigal concorda, aspergindo Inanna com uma nova vida, e a rainha dos céus revive, livre para retornar novamente ao mundo superior.
Um encontro com Ereshkigal, simboliza um tempo em que temos que descer "ao fundo do poço" e enfrentar aquilo que é doloroso, revoltante ou feio em nós. Pode trazer um desespero profundo: tudo é terrível e a vida é sem esperança. Pessoas que pensávamos estarem preocupadas conosco nos abandonam; os ideais parecem ser vazios e sem vida, o que antes dava sentido e conteúdo a nossa vida agora não é nada. Mas o mito nos ensina como lidar com tais estados de espírito. Os Lamentadores de Enki são o segredo, a resposta que nos ajudará a sair do escuro mundo subterrâneo quando estivermos presos no fundo dele. Da mesma maneira que os Lamentadores de Enki aceitam Ereshkigal, também podemos aprender a aceitar a depressão, a escuridão, a morte e a decadência, como parte da vida, como parte do grande círculo da natureza. Precisamos estar dispostos a penetrar em nossa depressão e nossa dor, a explorá-las, senti-las, esperando que passem. Precisamos de permissão para entristecer, lamentar e sentir rancor - não apenas em relação a pessoas e coisas que perdemos, mas ainda por fases perdidas de nossa vida, ideais perdidos que não nos servem mais. A aceitação permite que a mágica da cura funcione. Somente no momento em que Ereshkigal é honrada e reverenciada como uma deidade é que nós, como Inanna, podemos retornar ao mundo superior. Essa é a lição que Enki tem para todos nós; é a sua maneira de nos ajudar e de nos trazer de volta do mundo subterrâneo para uma nova vida e uma nova esperança.
A história termina com uma mudança interessante. Há uma regra que diz que quando alguém se liberta do mundo subterrâneo, é preciso encontrar uma outra pessoa para tomar o lugar daquele que se libertou. Quando Inanna retorna ao mundo superior, procura seu consorte Tammuz, que não a ajudara quando ela estava nos domínios de sua irmã, e diz: “Agora é a tua vez, deves tomar o meu lugar no reino de Ereshkigal”. Se um componente de um sistema se modifica, então todo o sistema terá de se alterar para que possa funcionar adequadamente. Se um dos parceiros, num relacionamento, passa por mudanças psicológicas significativas, a menos que o outro parceiro também se modifique, o relacionamento corre o risco de ser completamente destruído.
Inanna foi despojada de tudo o que lhe dera uma identidade e foi deixada morta - e mesmo assim ressurgiu renovada. A única maneira de descobrirmos que temos a capacidade de sobreviver à morte do nosso ego é passar pela morte do ego. Quando tudo o que pensávamos ser é levado embora, descobrimos que uma parte de nós que ainda existe - aquele aspecto do nosso ser que é eterno e indestrutível. Quando o que pensávamos que nos suportava é levado embora, encontramos o que realmente nos suporta. Esse é o Dom que Ereshkigal tem pra nós.
Adaptação de: “OS DEUSES DA MUDANÇA - HOWARD SASPORTAS - Edições Siciliano – 1991 – págs. 261/266”.
11 Comments:
Bom dia Ursa Mãe.
Hoje está menos pocinha?
Agora não tenho tempo de ler o seu post. Mais logo comento.
Posso saber porque nossa arara lhe chama Dinda?
É um nome carinhoso?
Beijinho e até logo.
5:37 AM
Nossa que texto!!!!!
http://dudve.blogspot.com
http://cartasintimas.zip.net
1:26 PM
já cá venho ler-te
tinha-te "perdido" pois tenho estado fora...
até logo.
2:43 PM
Meiguinha querida,
estou melhor sim, minha querida. Fica de olho no Jornal da Record por estes dias - sim? Uma dica: A matéria é sobre Santos Dumont.
Nossa arara me chama de dinda porque sou madrinha de casamento deles, que foi aqui no RJ.
Sou dinda dele mas de fato,me sinto amadrinhando ambos!
Se tiver tempo leia com atenção este texto. Acho que é bom pra todos nós. ursamãe.
Eduardo, é muito importante entrar em sintonia com as lições que Sasportas nos deixou. Não só o mito mas a profundidade da análise que faz pode ajudar muito em nossas andanças pelos abismos da vidas. um bj.Angela.
Oi Greentea! boas vindas. Então continuaremos a nos falar! que bom!!!
angela.
4:54 PM
Ursa Mãe, hoje sou eu que estou um trapo.
Estou cansada e não fiz nada de especial.
Vou ver se consigo ler este texto ainda hoje.
Também ando sem inspiração.
Ainda não consegui inventar uma história.
E não posso ver a TV Record porque não tenho TV por cabo.
Um beijinho grande.
5:13 PM
Não temos tv a cabo aqui em casa também. Olha querida meiguinha, não se cobre fazer o conto, ler o texto etc... não por mim! Espero que fique melhor e que descanse neste final de semana. Eu te conto logo o que será o assunto da reportagem e vc. poderá participar com a gente da mesma forma ok? Um bolinho de carinho. Ursamãe.
11:38 PM
o desenho e o título do desenho... !
6:19 AM
E ainda tem gente que teima em não dançar sua vítima!
Passei porque você faz parte de meus bons vícios diários e ontem não deu. Não consegui ver o programa, apesar de ter esperado até uma da matina. Será que a programação aqui é diferente? Ficarei atenta amanhã.
Almocei com Cid hoje e mostrei parte do meu trabalho. Gostei muito dele, grata por partilhar seu amigo comigo.
Beijinho
4:31 PM
Dora querida, grata por deixar seu mundo de fadas e vir aqui! carinho, angela.
125 araras azuis esvoaçantes!
Que bom ser vício de alguém!
Já respondi sobre o programa em Cmim e em seu blog mas acho que haverão outras notícias em breve.
Foi sensacional. Achei muito boa a qualidade da Record.
É preciso ver como eles fazem com a adequação do horário aí em Lisboa.
Espero que meus amigos sejam amigos entre si. Seria um ótimo sinal não acha?
Até breve com carinhos mil.
2:48 AM
Querida, vi seus recados e esperei para ver nosso galã, mas ontem não apareceu. Vou tentar ver no tal programa de domingo, hoje.
Adorei a história do manuscrito, parece cois de tesouro de piratas, imagino vocês lendo coisas que mais ninguém leu!
Hoje vim aqui só para te contar que sua melguinha meiguinha mandou um torpedo pedindo que avisasse suas amigas de que está com o computador dodoi. Não sabemos quando ela voltará, mas talvez consiga entrar no computador na fundação e assim a teremos de volta rapidamente.
3:45 PM
Obrigada querida Arara,
se puder diga à meiguina que sinto sua falta e desejo que ela e seu micro fiquem ótimos logo!
Quanto ao manuscrito foi descoberto faz quase um ano, no qual ficamos sem saber bem o que fazer... qual seria a melhor providência. Existem outros documentos que me mobilizam mais um pouco porque mais afeitos a pessoa do inventor. Sei que vc. entende esta predileção. Vão ser expostos em breve.
Temos o programa gravado e se não viu este verá depois e... haverão outros, na sequência. bj.
5:51 PM
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