Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

26.4.06

Dioniso e Urbano - um conto

The Bacchante - Jean-Léon Gérôme-1853
URBANO DOS SANTOS, UM SUBURBANO ORBITANDO EM SEU UMBIGO BAMBO

Urbano dos Santos tinha nascido num subúrbio carioca. O pai fez planos para sua vida desde que lhe escolhera o nome. Desejava que o filho fosse gentil, cortês e civilizado, se possível, um doutor.
A mãe morrera de parto e seu José tornou-se o centro da vida de Urbano.
No dia em que se formou no ginásio um enfarto fulminante o separou do pai e, a partir de então, Urbano que sempre fora sub resolveu ir morar em Copa.

Facilmente conseguiu um emprego como boy em um escritório de advogados graças à esmerada educação e discrição que o acompanhava como uma bula.
No burburinho da cidade, no bairro tão agitado e diferente de sua infância pacata, encontrou um quarto de pensão em casa de uma velha senhora mas tornou-se cada vez mais introvertido e inseguro. Era um deprimido. Sentia-se como um umbigo, seu centro havia se rompido com a morte do pai e o corte ainda doía.

Por influência de um jovem advogado do escritório começou a interessar-se por filosofia oriental e passava seu tempo de folga lendo Lao Tsé. As palavras do mestre o transportavam. Sentia-se olhando para frente e para trás ao mesmo tempo, por momentos tornava-se o furo central, vazio, de uma roda que o fazia girar no eixo e andar pra frente e pra trás, em círculos, sem espaçotempo, em curvas, tanto fazia... Passava horas livre da depressão umbilical, desligava...

Um dia contou ao amigo como se sentia e este riu, contestando-lhe o nome:
- Urbano? Qual... Você está mais para Orbi que para Urbi, devia chamar-se Orbiano ou Orbitano! Vive no espaço, entrou em órbita amigo!

Foi um outro aprendizado. Latim, palavras do Papa, cidade e mundo... E foi então que, com a assídua presença de Dioniso e seus ensinamentos, Urbano começou a perceber-se, talvez menos civilizado, nem tão contido nem controlado, um pouco mais instinto.
Seu corpo fervia às noites e, no chuveiro, se pegava pensando no amigo mais do que se permitia.
Paradoxo. Seu umbigo não mais era um centro vazio. Aliás, seu centro descia para o foco da imensa excitação que lhe roubava o sono. Parecia que o corte tinha se fechado, não se sentia mais só.

A aproximação com seu "mentor" se estreitava. Todo dia saiam juntos do trabalho e, aos poucos, o papo do chope varava a madrugada com a conseqüente insônia, banho frio e pensamentos nem um pouco.

Dioniso, o advogado, estava se preparando para um concurso público e havia bastante matéria para que a parceria no estudo se estendesse por noites adentro.
No afã de ajudar o amigo a passar no concurso, Urbano saiu de seu quarto na pensão e foi morar no pequeno apê de Dioniso.

Toda noite o cansaço os jogava dormindo no chão, sobre os estudos.

Um dia, folheando os livros do amigo, procurou no dicionário o nome do outro.
Qual seria seu significado? Queria parecer brilhante buscando também, alguma brincadeira interessante.
Não achou Dioniso mas Dionisíaco, e aquele seu novo "centro”, recém descoberto não tardou a se manifestar. As palavras "natureza... agitada, desinibida, arrebatada” confirmavam a atuação de Dioniso em sua vida.
Ficou mais perturbado ainda, mas guardou para si a descoberta que preenchia, com fantasias, seu espaço antes vazio.

Na biblioteca pública encontrou a história de Dioniso, o deus grego, e a comparação que os autores faziam entre ele e Apolo. Não pode deixar escapar sua identificação com o belo deus da ordem, da verdade e da claridão.

O amigo passara na prova, estavam recompensados. Com seus esforços, a lei e a ordem estavam saciadas. Pela via de Apolo, nada a reclamar.

Com uma desculpa ligeira, saiu mais cedo do trabalho e passou num mercado para levar vinho para casa. Como seria o "Deus do vinho" após uns tragos?

Noite adentro, cansados de papos taoístas, latim e legislações, o vinho desceu macio e o sono os deixou entregues sobre o tapete. Quase manhã, descobriram - se abraçados em meio ao sono e entraram em órbita confluente onde a paixão tomou conta de tudo, todo o dia.

No escritório a preocupação com a ausência de ambos aumentava na medida em que os telefonemas não eram atendidos.

À noite os dois saíram em meio à aglomeração da cidade, buscando um lugar de festa.
Em transe, não paravam de beber, olhavam para frente e para trás ao mesmo tempo, tornavam-se o furo central pleno, de uma roda de paixão que os fazia girar no eixo e andar prá frente, pra trás, em círculos, sem espaçotempo, em curvas, tanto fazia ...

Após três dias de festa, drogas, dança, sexo, paixão e vida, uma ambulância os recolheu a um hospital público cujas janelas estreitas dos quartos da enfermaria, se pareciam com as gavetas dos cemitérios.


Angela Schnoor - para saber mais sobre Dioniso clicar sobre o título.

8 Comments:

Blogger Folha de Chá said...

Um em órbita, com o outro. Levaram-se ao desvario, que os internou. Houve um final feliz?

8:41 AM

 
Anonymous Anônimo said...

A única coisa que posso dizer... Qaundo crescer quero que o texto seja tão bem escrito como o seu.
http://dudve.blogspot.com.br
http://cartasintimas.zip.net

10:44 AM

 
Blogger Angela said...

Oi Folhinha, será que a vida se parece com os contos de fadas? Será que temos finais? e serão felizes...? Neste caso, em que me inspirei,por enquanto está tudo bem. Foi apenas num amigo que ficou muito mal de repente e as janelas do hospital pareciam nichos mortuários. Basta uma imagem e o resto se constrói. Obrigada pela visita não sei se sentiu o sabor do chá com bolinhos virtuais, o abraço também...

3:57 PM

 
Blogger Angela said...

Sabe Eduardo, como vc. fico desejando escrever, ora como Rimbaud, ora como Pessoa, por vezes sonho ter o humor e leveza do Veríssimo, o espírito de Quintana, e assim vai... mas, serei sempre eu mesma e ficarei triste se ficar me comparando a outros. E saiba que já li um moço, o Dudu, conhece? e já desejei ter tido idéias criativas como as dele... conceber imagens lindas que nos transportam como se um quadro fossem...Talvez desejasse ser jovem como ele e ter mais tempo para curtir este ser eu mesma! Um beijo. Angela.

4:04 PM

 
Blogger 125_azul said...

Histórias, você conta maravilhosamente histórias!Dá vontade de vir aqui, ir ficando, ficando...

4:24 PM

 
Blogger Angela said...

Obrigada minha querida amiga. tenho a cabeça cheia de idéias e pouco tempo pra escrever mas... tentarei. bj.

7:49 PM

 
Blogger Folha de Chá said...

Hummm... uma delícia, o chá e os bolinhos. :)

12:48 PM

 
Blogger Angela said...

Também gostei!

1:04 AM

 

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