Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

29.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 15

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma
Vulcana - desenho de Angela Schnoor

Conto 15
INVERSÃO DE PAPÉIS

Fora criada pela avó, a quem tratava por mãe.
Órfã ao nascer, não tinha irmãos, mas os primos e primas faziam-na sentir-se numa grande família. Carinho e educação não lhe faltaram. A avó era dedicada e o ambiente na família era alegre e de muita união. Entretanto eram pobres, moravam na periferia da cidade e logo cedo teve que “pegar no batente” para ajudar nas despesas da casa e ter atendidos, alguns dos sonhos femininos.

Parou de estudar, mal terminou o primário e enfrentou a primeira “casa de família”. Gostava de se vestir com cuidado e sensualidade, era uma jovem e gostosa mulata e em suas idas e vindas pela Central, era sempre paquerada e, às vezes tinha que sair na briga com um machão mais ousado e abusado pois tinha aprendido a se valorizar e a se defender. Desenvolveu uma personalidade forte, confiante, amável e prestativa embora fosse um pouco tímida em questões pessoais.

Gostava de dançar e tinha sempre muitos amigos à volta, mas o coração cedo se deixou fisgar por um rapaz da vizinhança, muito caseiro e como ela, louco para ter uma família.
Casaram-se e foram morar numa casinha dentro do terreno da mãe dele. Filho único, cercado de irmãs, a mãe lhe fazia todas as vontades e achava que a nora deveria seguir seu exemplo. Afinal, ele era bonito, trabalhador e muito sério.

Por desejo do marido, parou de trabalhar e começou a viver para a maternidade. Teve um casal de filhos e sua vida era tranqüila e agradável junto à família, e aos amigos até o dia em que os filhos começaram a crescer. As despesas cresciam e o salário do marido, que não tinha aumento a tanto tempo, foi ficando cada dia mais curto.

Ele não queria, mas teve que ceder quando ela resolveu trabalhar fora novamente. Sua filha, já mocinha, podia cuidar da casa enquanto não estava na escola e o rapaz também teria que tentar um trabalho enquanto não ia servir ao exército.

Conseguiu um emprego como diarista e aos poucos, foi se tornando uma excelente profissional. Aliás, ela possuía qualidades raras entre as domésticas da zona sul: chegava cedo, não faltava ao trabalho e se esmerava em tudo que fazia. Foi ganhando a confiança e o carinho dos patrões. Sua alegria aumentava na medida em que era cada dia mais valorizada no trabalho.

Aí começaram as brigas em casa. O marido, não podendo impedi-la de trabalhar, descarregava sua autoridade, prendendo a filha adolescente, não permitindo qualquer namoro e cobrando da mulher atitudes repressivas das quais ela discordava completamente, pois era liberal no pensar e estava sempre bem informada quanto à educação moderna.

Um dia, o marido chega em casa com a notícia de sua demissão da firma. Foi um baque, mas todos pensaram que fosse temporário.
No início fazia um bico aqui, outro ali e ia levando... Aos poucos, foi se acomodando e vivia em roda de amigos, no barzinho da esquina, quebrando o galho dos vizinhos e...Sendo sustentado pela esposa que, chegando do trabalho, ainda ia direto para o fogão, exausta e sentindo-se cada dia mais lesada.
Todo dia ela pedia e reclamava, reclamava e pedia... Que a família colaborasse nos trabalhos domésticos.

Nos finais de semana, começou a deixar a casa de lado e a sair com as amigas para um bom pagode regado à cerveja.
Aos poucos, a vida em casa foi mudando de rumo, o marido passou a dormir na sala e mal falava com ela. A sogra a responsabilizava pela infelicidade do filho, pois ela não cuidava mais dele como antes. As contas se acumulavam, já que até o fruto dos raros biscates acabava no bar da esquina.

A vida para ela começava fora de casa. Trabalhava cada vez com mais prazer e afinco. Apareceram outras possibilidades para aperfeiçoar-se e, melhor ainda, voltou a estudar para completar o segundo ciclo. Estudar inglês tornou-se seu próximo plano!

Hoje sustenta a casa sozinha e o marido, com a ajuda da filha, cuida das tarefas domésticas enquanto ela estuda.

Parece que ele se encontrou nas prendas do lar! As brigas acabaram, mas ele tornou-se apenas um amigo, e está todo orgulhoso porque, no próximo verão, ela irá com os patrões passar um ano no Esterior!

©Copyright ANGELA SCHNOOR


2 Comments:

Blogger 125_azul said...

maridos femininos, "deseficientes", amputados emocionalmente. Adoro sus animas!

1:46 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Que bom que gostas delas...
fico feliz!
Eu admiro tanto este feminino guerreiro e inteiro!
bj.

2:24 AM

 

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