Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

3.4.06

Anima- pequenas histórias femininas 18

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma

conto 18
Tatter - crise de identidade

Era uma garota especial. Alegria da casa, fartura de amigos, atraente e segura de ser única. Alta, mais que a média, lindos cabelos louros e longos, pernas bem torneadas, gostava do trabalho que fazia, ensinava aos jovens e estava satisfeita com suas escolhas.

O primeiro sintoma apareceu na praia. Começou a ter nojo de areia.
Sentia-se suja e corria para casa mas, após um longo banho, o duro e ensaboado esfregão lhe devolvia parte da serenidade.

Aos poucos o banho não dava mais alívio para suas angustias.
Pensou em proteger seu corpo e guardar suas histórias como um livro que escondesse seu conteúdo sob uma dura e insossa capa. Entretanto, meias e luvas, chapéus e amplos casacos não se faziam suficientes pois, ao chegar em casa era obrigada a despir-se.

Estava se transformando e, com a crise de identidade, não se sabia mais igual ao que sempre fora. Olhava-se ao espelho e não se via. Quem ali estava era uma outra que não reconhecia. Quieta e esquiva, preocupava a família e já não enganava os amigos mais próximos.

Pensou em resguardar suas lembranças fugidias, antes que se fossem, disseminadas nas sombras que a dominavam. Iria inscrever seus símbolos e signos sobre a pele. Não se esqueceria. Cada pedaço desenhado seria parte de sua história.

Tatuagens múltiplas devolviam temporariamente sua segurança, logo perdida e reencontrada em mais uma e mais outra imagem, até que seu corpo quase nada tinha de espaço a descoberto. Na fantasia, cada desenho era a sua identidade marcada e nunca mais perdida. Era sua história, sua vida, não poderia ser confundida por si mesma, “aquela outra” não teria espaço a ocupar em seu território.

A cada tatuagem, a dor também trazia um novo alívio. Aí foi a vez dos piercings.

Não percebia que a necessidade de sentir dor fazia parte da culpa da “outra” que queria emergir. Através da dor, encontrou a forma com a qual conseguia trancá-la do lado de fora.

Em casa, ninguém mais a reconhecia. Os amigos se distanciaram.
Na tentativa de manter viva sua personalidade interior e anterior, mais se distanciava de si mesma.

Largou o emprego e foi trabalhar num pub.
Os cabelos ganhavam coloridos vários e as roupas comuns foram substituídas, meticulosamente, por modelos confeccionados especialmente para ela, por uma nova amiga.
O que não era divulgado junto ao sucesso desta modelagem especial é que os desenhos eram o produto das imagens que lhe povoavam os pesadelos.

Sua aparência começou a fazer sucesso e, por sorte, chamou a atenção de um fotógrafo estrangeiro em passagem pelo Rio. As fotos dariam um bom dinheiro e, que custava? Adotou um pseudônimo “rebelde” e bastante de acordo com o trapo em que havia se tornado sua alma.

Sucesso na Europa. Revistas estampavam sua imagem pelos quatro cantos do mundo, enquanto inúmeras jovens a imitavam.

Industrias de vestuário, tinturas, maquilagens, adereços e penteados geravam hordas de clones, estampas vivas de sua defesa contra a invasora, todos idênticos à identidade forjada. Personagens identificados com a máscara que escondia o medo.

Já exausta de trabalho, angústia, álcool e soníferos, num quarto de hotel teve um pequeno espaço de tempo entre uma foto e um desfile. Despiu-se em frente ao espelho. Cada desenho que olhava dava voltas na memória e contava histórias que não mais reconhecia. Foi ficando tonta. O mundo girava cores tatuadas em desespero.

Perdeu-se de tudo, foi se da hora. Em vão os telefones tocavam e a porta gritava os socos que sofria.

No quarto vazio uma pele desenhada jazia, como que despida, em frente a penteadeira.

Do outro lado, de dentro do espelho, uma jovem clara e nua com cabelos longos e louros, sorria.
Tinha encontrado, enfim, aquela que a procurava.


Angela Schnoor

5 Comments:

Blogger C_mim said...

bonito, ursamãe.

9:29 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Lindo como sempre embora para mim esteja um bocadinho confuso.

Beijinho para Ursa Mãe e muito obrigada por sentir minha falta.

11:01 AM

 
Blogger 125_azul said...

Trancada do lado de fora. Ah, uma criança uma vez me disse que a mãe ia trabalhar e ela quando chegada da escola ficava trancada na rua...até a mãe chegar,
E disse com tanta angustia e abandono, lembrei imediatamente sua menina tatuada quando li. Cedo, que dores fazem com que nos percamos assim?
beijinho

2:41 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Õba! voltaram as minhas queridas Lisboetas!

Melguinha, é claro que senti sua falta! como não?
Só com vc. as coisas que escrevo ficam completas pois, como diz meu marido que estuda taoísmo, quando tudo que falamos ou ensinamos etc... fica claro não foi bom pois não está completo. As coisas só estão completas quando o lado sombrio também aparece!

De todo modo , no caso deste conto em especial, estas crises são mesmo muito confusas... se é assim pra nós imagina pra quem as vive?

3:18 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Querida 125_azul,
que triste mas, que linda esta frase da criança!

Nem todas as crianças sentem assim mas as mães deviam saber quando elas vivem a falta desta forma!
mundo ruim este que obriga à carência materna devido a busca tão difícil pela sobrevivência !
Como tenho tido saudades do tempo dos casarões de "família" com a convivência de todos com todos e das crianças como parte de uma grande união amorosa (às vezes meio doentia também!) e que veio a ser substituída, muito mal, pelas creches!

Neste caso acho que as dores são da culpa pois foi abusada pelo padrasto. Não lembra tudo mas, sempre achei que teve muito prazer...e ...

3:30 PM

 

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