Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

22.7.06

Amigos de Jó


foto de Misha Gordin

AMIGOS DE JÓ

Algum tempo após o assassinato de meu irmão Gustavo comecei a ver claro algumas coisas.

O sentimento de sua permanência viva em minha vida, independente de fugas ou negações, foi uma coisa que me intrigou de início e me abriu a consciência ao passar dos dias.

Uma conversa lúcida com uma grande amiga, sábia e prática de muitos anos com o “parto às avessas” como ela chama seu trabalho com assuntos de morte e vida, me fez entender que, por alguma via consciente ou não, eu estava sabendo da inexistência da morte, tão apregoada pelos que professam religiões e filosofias orientais.

Outra benção foi poder esquecer o medo e os controles em relação à segurança de meus familiares e amigos, principalmente de minhas filhas. Creio que, aos poucos, a morte que, enquanto minha, já estava íntima e aceita começou a pertencer à realidade da vida como um todo não pelo saber da razão, mas pela inexplicável lucidez da consciência.

Já me sei capaz de não sucumbir a tantas despedidas que serão certas ao longo do que me restar de caminho. A violência ainda me machuca e dói, mas não mais me revolta ou intimida. Não porque eu esteja fria ou acostumada a ela, mas acontece que, com a aceitação da impotência sobrevém, no íntimo, uma paz que desejo a todos as pessoas, pois não tem a marca da resignação, mas a doçura da aceitação.

Entretanto, uma das coisas que mais me surpreendeu foi descobrir que aqueles como eu, que passam por tragédias, ainda mais quando elas vêm em série, atraem um tipo de comportamento humano quase previsível.

Algumas pessoas correm até nós para serem “Os salvadores” e estão sedentas para ajudar e se sentir potentes, boas e compassivas. Sabem todas as fórmulas, conhecem todos os Gurus, passes e mágicas para te devolver a alegria e a vida ou te tirar das garras do sofrimento. Estes se decepcionam quando descobrem que você não está tão desesperada quanto eles imaginam, e saem de fininho se você não se entrega às suas soluções preferidas. Alguns não conseguem mesmo acreditar que você possa estar em paz interna apesar da dor.

A outra classe de pessoas te evita como se você estivesse marcada com o selo de Jó ou do demo, sei lá! Acho que imaginam que você seja escolhida do destino, esteja imersa no caos, possuída das sombras e que vá contaminá-las com seu "azar" ou com seu sofrimento (e só posso mesmo é imaginar, pois que elas nem falam com a gente!).

Estas estão fugindo da dificuldade como o diabo da cruz e então somem de você e, quase sempre, nem te ligam para dizer um oi! E acabam sem a chance de aprender um pouco que há pessoas que tem fé e coragem acima de qualquer coisa e que não temem a dor e nem a morte, que não vão despencar em cima do próximo, mas sofrem um pouco mais com o desamor egoístico e o medo que paralisa os amigos fracos que pensava ter.

Mas, graças à vida, há as pessoas que são solidárias e que te acompanham com carinho aceitando seu ritmo de recuperação, conversando, ouvindo e te doando na medida de suas possibilidades, o carinho de sempre. As que acreditam em você e não temem que sua dor as leve para um poço imaginário. Estas estão ali ao lado, sem fugir ou pensar que são deuses. São os amigos de fato e os que te conhecem de verdade. E eu dou graças à dor que me permite distingui-los.
Que a vida abençoe com a paz estes seres tão plenos de humanidade.

Em 10 de novembro de 2003.
Angela Schnoor.

Espero que seja útil para os que sofrem por mortes subitas e violentas.

 Posted by Picasa

2 Comments:

Blogger melga meiguinha said...

Obrigada por este post mas, mesmo depois de passados quase 37 anos, acho que sinto a mesma revolta que no 1º dia.

Verdade seja que, infelizmente, amigos verdadeiros sejam pouquíssimos.

A única diferença é que hoje talvez consiga lidar melhor com a saudade.

8:32 PM

 
Blogger Angela said...

Meiguinha, este fato deve ter acionado seus sentimentos de impotência. É como as coisas súbitas nos deixam, ainda mais quando ainda não estamos maduros.
buscar a aceitação dos limites seria melhor pois a revolta só nos faz mais mal e em nada ajuda...
No caso dos amigos não é que sejam verdadeiros ou não, às vezes são bem intencionados mas a maioria funciona dentro de "pacotes" e atuam como se houvessem receitas prontas!
Se ao menos a saudade é menos sofrida, já é um começo...
Torço para que consiga ser mais serena, por você, para que sofra menos. bjk. ursa.

11:47 PM

 

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