Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

13.4.06

Conversas com seres que me habitam

Anna da Rocha Miranda Schnoor (Nini Miranda)


Vó Nini

Um carrinho de vendedor de sorvetes, um presente inesperado e fascinante, é o primeiro vínculo que minha memória guardou de você.
Como uma avó pode saber da felicidade de uma criança? Só uma de verdade!
Ensina-me, em sonhos, já que me aproximo dos tempos deste aprender.


Minha primeira filha teve seu nome, não poderia ser outro, pois cresci com sua jovialidade guardada na retina: o lençol branco cobrindo a cabeça ao entrar na sala, braços e pernas estendidos e os passos largos, como um bicho estranho. Num sofá, me guardava de uma doença infantil imediatamente esquecida com seu cantar o "bicho cundum, salalassalão" enquanto ria e rolava no chão da minha idade.

Um outro dia, uma festa e o espanto de te ver dançando com papai, mais jovem que todas as moças. Sua pequena sandália prateada atestou, durante anos, a veracidade desta quase fantasia.
Pouco depois as visitas, uma ou duas, na casa de saúde onde, em absoluta ignorância da gravidade de sua doença, minha irmã e eu festejávamos os cubos de açúcar com que nos enchia as mãos.
A salva de prata na janela do quarto ficava quase vazia e a despedida, a última, tornava-se cheia da doçura que acabávamos de herdar.

Você não foi avó, foi símbolo. Antes dos nove anos, antes do natal, você foi a primeira morte em minha consciência infantil. Quis te ver e me deixaram.

Ao lado de seu corpo, dois aprendizados - descobriram de onde vinha meu nariz arrebitado, comparavam nossos perfis, enquanto minha mão sobre a sua sentia com uma sensação jamais repetida, o toque da morte.
Fui ao colégio e pude chorar muito, a atenção dos colegas e professoras me foram gratificantes. A dor e o prazer se fizeram companhia naquele dia de dezembro.


Cresci procurando saber de você. Sua mala de guardados era vista e revista.
Lá estavam as sandálias de prata, as fotos, as histórias que escrevia, seus programas no rádio, suas cartas políticas e os atestados da mulher diferente, independente, senhora de sua vida, fundadora de associações públicas, protetora das donas de casa.

Mais busquei além da mala de guardados. Soube de seus amantes e admiradores. Deus!...Uma mulher do século dezenove que sustentou os filhos sozinha, que perdera uma filha mocinha e que havia se separado do marido no desabrochar do século vinte!
Fascinada, soube que montava a cavalo perfeitamente e gostava de usar um grande relógio de pulso, masculino. Aquela mulher linda, cantava e tocava nos saraus encantando os homens e ameaçando as recatadas senhoras da época!

E os carinhos dos filhos!
Como papai e seus irmãos, meus tios, se referiam a você com amor e mantiveram suas brincadeiras e fantasias que tanto encantaram minha infância!
Um dia, sua irmã Sara tão querida, me chamou pois guardara sua caneta e carteira de notas com os santinhos e fotos, - "como estavam quando ela morreu" para que ficassem comigo - todos sabiam de meu carinho especial por você.
Tive pena de tia Sara. A caneta, era de ouro, e...sumira! Ela, velhinha, não sabia como...
Outras coisas foram retiradas num rompante de sua carteira ante o meu espanto e o da tia!
Coitada daquela criatura, elas não sabiam que não poderiam sumir com o você em mim.

Comigo moram seu gosto pelas hortênsias que, em momentos de paz, minha mãe levava ao seu túmulo e que marcou o cemitério como um belo local, pleno de bons momentos. Também o gosto pelos contos e cantos, as brincadeiras tolas e a alegria. A admiração pela fibra e pela coragem de ser pessoa antes de qualquer limite social.

Trago da pequena parte de sua vida partilhada comigo, boas lembranças e muita admiração, mas tenho pena, vó Nini, daquela fria morte que te levou tão cedo pois sei que seríamos amigas e que eu teria muitas perguntas a fazer sobre o "bicho cundum" que te minou as resistências.

Obrigada pelo pai que você me deixou, que bom você ter existido antes de minha vinda e ficado... Ainda um pouco.
Foi pouco o que pude te dar, mas sei que a felicidade por "vender sorvetes" dirigindo o carrinho pela sala naquele aniversário distante deve ter compensado a dificuldade de conseguir-me um presente tão especial.

O meu amor.

Sua neta, Angela.


Em 15/01/2003




5 Comments:

Blogger C_mim said...

Muito bonito.

Eu lembro dos olhos azuis muito doces da minha avô Filomena e do seu doce de abóbora.

Nunca mais provei igual... Dizem que tenho a pele como ela...

3:49 PM

 
Blogger Angela said...

avós...parecem seres mágicos não?

fico pensando como serei na visão de meus netos...
Estou sem conexão e quase não me acerto com o teclado do micro de meu marido que, paradoxalmente, consegue conexão! Vá alguém entender este Rio de Janeiro!
E Melguinha, já apareceu?
bj.

12:34 AM

 
Anonymous Anônimo said...

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12:37 AM

 
Blogger 125_azul said...

Também estou com dificuldades com a net, esou no Algarve e minha net portáctil não funciona mto bem aqui. Aproveito que deu conexão para comentar seus 3 posts de hoje: maravilhosos. caso não consiga voltar aqui, regresso terça a lisboa, beijos e páscoa feliz e vc é uma avó maravilhosa e seus 2 netos e meio adoram seu enrosco azul...

12:13 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Minha arara querida, espero que descanses no Algarve e saiba que meu "ser neta" também se enrosca no azul do carinho dos amigos!

beijo e inté terça. Páscoa plena de ressurgir esperanças!

2:31 AM

 

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