Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

12.4.07

De um avô para sua netinha


Laudate Pueri

Cada um louva como pode. Os magos reis, ricos, trouxeram presentes caros, preparados por artistas e comprados em lojas de cristal; mas os pastores, pobres, trouxeram nas mãos coisas que elas mesmas haviam colhido: o brilho das estrelas nas noites tranqüilas, a música das flautas na solidão das colinas; o cheiro do capim molhado de orvalho; as vacas e os jumentos, sem nada poderem colher ou comprar, louvaram a criança com seus olhares mansos e, musicalmente, binariamente, com o balanço de seus rabos.

Eu também louvo do jeito como sei e posso; são 5 horas da manhã, a lua, aliás uma meia lua, faz tranqüilamente o seu serviço de luz do meio do céu.

Penso em você, que ainda não vi direito e nem pensa em mim, por não saber que eu existo.
Me pergunto sobre o louvor que sei; música, é claro. Não existe nada mais profundo. A alma nos seus lugares onde as vozes perturbadas dos homens não atingem, onde tudo é silêncio, lá não há palavras, lá só existe música. Os físicos de hoje quanto mais sabidos, mais tolos ficam.
Esquecem-se da sabedoria dos antigos, dizem que no início de todas as coisas está a energia.

Agora, eu lhe pergunto: a você que nunca foi a nenhuma escola: o que vem primeiro, a música ou o instrumento? Qualquer tolo sabe que a música veio primeiro.
Primeiro os homens ouviram a música com os ouvidos da alma. E tão fascinados ficaram que trataram de inventar instrumentos para que também os ouvidos do corpo pudessem ouvir.
Da música nasce a matéria, os físicos antigos sabiam disso. Olhavam para o céu estrelado e ouviam a silenciosa música das esferas: cada astro era um globo de cristal, instrumento de uma orquestra na qual Deus tocava a sua música.
Um evangelista escreveu: “no princípio era o verbo”. Mas ele distraído, se esqueceu de dizer que esse “verbo” eram as palavras de uma canção.
Ele prestou atenção só na letra, caso contrário teria escrito, “no princípio era a música”.
Posto que, com a sua chegada, o Universo se inicia de novo, achei que seria próprio combinar o escuro da noite, o brilho da lua e a minha abençoada solidão da madrugada com a música, para assim louvar você.
Não quero lhe oferecer só a música que existe nos vãos das minhas palavras. Quero lhe oferecer música pura. E foi assim que no meio dos meus “cds”, procurei e achei “Laudate Pueri”: Louvai a Criança, de Vivaldi e Handel; é isso que ouço enquanto escrevo.
Prestando bem atenção, você perceberá que seu nome é música, unicamente música, basta repetir alto. A uma menina bailarina que dança em câmara lenta, compasso binário, ou será o movimento das asas de uma gaivota, binários também; talvez não haja diferença, o que todos os bailarinos desejam é voar como pássaros, por isso saltam tão alto, suplicam aos deuses o milagre de transformar sua dança em vôo; na verdade desejam levitar, flutuar no ar.

Este ritmo binário, tum, tum, tum, tum, tum, assim bate o coração da mãe a que seus ouvidos estiveram encostados por 9 meses e de tanto ouvi-lo, ele ficou gravado no seu corpinho, que, agora sabe que quando esse ritmo é ouvido, o universo está em ordem. Tum, tum, não há o que temer: pode dormir.
Assim batem as canções de ninar, assim balançam os berços, assim batem as mãos no bumbum do bebezinho. Todos querem imitar o coração materno.

O que vou lhe dizer é um segredo: conversa entre avô e neta, os pais estão excluídos, não digo nada pra eles; aprenda: os adultos são uns tolos.
É preciso que você não fique como eles, claro que eles vão fazer de tudo para passar você na máquina xerox chamada “escola”. Resista, se eu ainda estiver por perto eu a ajudarei, palavra de avô.
Pergunte a Mariana, sua priminha, ela confirmará o que estou dizendo.
O Pequeno Príncipe... até me esqueci de perguntar a você em sua longa viagem até esta terra: Não passou por ele? Como ele é? É fácil saber. Mora num minúsculo asteróide, vindo de uma rosa, tem um carneirinho e morre de rir quando se lembra dos adultos. Ele percebeu aquilo que só nós crianças percebemos: que eles, os adultos, são todos doidos.
Por exemplo, foi ele quem me disse isto: se a gente contar para um adulto que mora numa casinha em Falcão, de paredes brancas, janelas vermelhas, flores no jardim e pássaros no telhado, ele fica olhando, cara espantada, como se fôssemos do outro mundo. Agora, se a gente disser que mora numa casa que custou 500 mil reais, ele sorri e diz: mas que linda casa! Os adultos pensam que o maior e mais caro são o melhor. Pensam que a alegria e os deuses vêm empacotados em embrulhos grandes.
Por exemplo, quando falam em “Deus” pensam logo em coisa grande, muito grande, terrível, do tamanho do universo, e ficam falando em coisas que o pensamento não entende, como tempo de bilhões de anos e distâncias de anos luz.
Não sabem que a alegria, o maravilhoso, o divino, estão ali pertinho, ao alcance da mão. Divina é uma gota de orvalho, uma banana pintadinha, uma amora roxa, uma cambalhota do tiziu, um raio de sol, uma teia de aranha, a cor de uma joaninha, um bombom, uma bolinha de gude, um amigo, uma acertada de bilboquê, coisas pequenas, sem preço.

Como você, você é pequenininha e ao preço do mercado não deve valer muito. Mas você é mais maravilhosa que tudo, que o universo inteiro. Sabe por que? Porque você tem o poder de dar alegria e sentir alegria e o universo não tem. Deus é alegria, uma criança é alegria, na verdade Deus é uma criança, ambos têm isso em comum. Ambos sabem que o universo é uma caixa de brinquedos. Deus vê o mundo com olhos de criança, está sempre a procura de companheiros para brincar.

Os grandes, doidões e perversos pensam que Deus é como eles, de olho malvado, que os espiona em todos os lugares para castigar: você sabe que não é assim, sua boquinha no seio de sua mãe e sem saber nada, mas você já sabe a filosofia essencial. No seio se encontra o resumo de tudo que vale a pena ser sabido. Primeiro: que é importante viver. O leite dá vida, mas o seio não é só lugar do leite. É lugar de deleite, prazer, a gente vive para ter prazer. No seio se aprende que viver é bom, viver é divino. O mundo é um corpo cheio de seios, um espaço cheio de paraísos. Mas os seios e os paraísos só aparecem àqueles que têm os olhos de crianças.
Estas coisas que estou lhe passando, são coisas que só aprendi direito depois que me tornei avô.
Eu sabia delas quando era menino, quando virei adulto, fiquei sério e esqueci. Depois de ficar velho esqueci as coisas de adulto e reaprendi o que havia esquecido.

Sabe: Ad, G., você e Vivi, Nicola e outros que vierem, estou fazendo uma casa para vocês. Lá estou colocando as minhas coisas de crianças, os brinquedos. Somente estes julgo dignos de serem preservados; lá estão piões, bolas de gude, pipas, quebra-cabeças, bonecas, bolas, um mundaréu de objetos inúteis, que não servem para nada, mas que têm o poder de fazer sonhar, livros de estórias, de poesia, de contos, livros de figuras, quadros, pôsteres, cds, jardinzinhos, etc.
Esta é a minha casa, a minha herança, uma casa de brinquedos para vocês. Isto me faz feliz. E quem sabe: até mesmo seus pais e outros adultos tornados crianças se juntarão a nós.

Beijão do avô e pai, companheiro de brincadeiras, lá e aqui, mas sempre viajando.
José Carlos Franco Faria
O autor, José Carlos Franco Faria, é médico e escreveu este texto em abril de 2000, quando do nascimento de mais uma netinha.Recebi de sua filha Marcelle, por e-mail, e o publico com sua autorização.
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frase do dia:

Não há razão para que o bem não possa triunfar sobre o mal, basta que os anjos se organizem mais ou menos como a máfia. Kurt Vonnegut

3 Comments:

Blogger 125_azul said...

Que texto maravilhoso. Louvar é um verbo fantástico, quase o melhor de todos! E anjos organizados como a Máfia é uma idéia genial! Beijinhos, vou correndo ler e comentar tudo o que perdi nestes dias de ausência.

7:24 AM

 
Blogger melga meiguinha said...

Querida Ursa,

Que texto lindo e sábio.
É tão boa a parte de criança que todos temos(ou devíamos ter).

Ontem estava muito feliz mas já não tive tempo para lhe vir contar as novidades.
Passei parte da tarde com a Dra. Dulce e o Miguel e até lhe dei o biberon. Foi tão lindo!

Beijocas.

7:24 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Texto envolvente e míticos.

7:44 PM

 

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