Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

27.2.06

A ÁGUA

ENCONTRANDO COM A ÁGUA


Uma tarde recebi um pequeno bilhete, cuidadosamente envelopado, deixado na portaria do meu consultório.

Dizia:
Minha irmã, Água, gostaria muito de conversar com você. Mas, como tem muito receio de sair à rua, gostaria de saber se você iria à sua casa, onde sente que estaria mais à vontade para uma entrevista.
Seu telefone é ********.
Ela aguarda, ansiosa, um contato seu. Acho que você poderia ajudá-la de forma mais eficaz caso fosse atendida em seu próprio ambiente. Agradeço a sua atenção. Terra.

Por alguns instantes ponderei. Não tenho o costume de ver clientes em casa, mas lá no fundo, eu já desconfiava que Água poderia ser retraída, depois do que o Fogo me contou sobre sua delicadeza e introspecção.

Bati à sua porta já no final da tarde, pois conforme combinamos em rápida conversa, ela havia me dito que não gostava de acordar cedo e costumava estar mais desperta nessa hora.

A sala estava iluminada por um belo e antigo abajur que lançava sua luz amarelada sobre diversos porta-retratos espalhados pelas peças do aconchegante aposento.

Água tinha uma aparência arredia e desconfiada e seu olhar, embora terno e suave, pousava sobre mim com receio. Assim que entrei, indicou-me um sofá e enroscou-se no que me pareceu ser sua poltrona preferida.

Por algum tempo ficamos em silêncio e seus olhos me escrutinavam numa indisfarçável sondagem. Entendi que as palavras não eram seu melhor veículo de expressão e que caberia a mim a iniciativa das perguntas.

- O que deseja de mim? Perguntei.

- Tenho muitos medos, respondeu com olhos baixos, calando novamente.

Comecei então a perguntar sobre sua infância, seus pais, seu nascimento.

Com grande esforço suas defesas começavam a ser vencidas, pois o assunto fez brilhar seus olhos claros e ela começou a contar-me.

Procurei, intencionalmente não interferir. Atenta, apenas balancei a cabeça assentindo e acompanhando a longa e rica história que brotava de sua alma delicada.

Em dado momento parecia haver esquecido minha presença, tão à vontade estava, imersa em suas memórias.
A história caminhou por sua infância e, quando começou a falar da adolescência os olhos marejaram e um soluço sacudiu seu corpo que havia me parecido tão frágil.

Uma força imensa parecia tomá-la de assalto. As mãos crispavam-se sobre as dobras do camisão que vestia e a doçura deu lugar a expressões dramáticas que acompanhavam, com revolta e ódio, o relato dos fatos que a machucaram.

Impressionada, eu assistia a uma catarse colossal que me fez lembrar os vulcões que o Fogo mencionara.
Diante de mim, a jovem delicada se transformara em puro instinto de sobrevivência. Seus medos, assim expressos, pareciam lavas flamejantes que deixavam o presídio onde haviam se escondido.

As horas escoaram e só percebi que era noite quando ela começou a flexionar as pernas e a esticar os braços, relaxando.

Lágrimas suaves trouxeram de volta a doçura àquela face antes tão tensa e avermelhada.

Devagar, levantou-se e veio para o meu lado no sofá. Estendeu o corpo, deitou a cabeça em meu colo e adormeceu.

Fiquei ali por algum tempo, pensando.

Como tinha sido traumático para ela lidar com o ímpeto do Fogo.
A dificuldade para comunicar o que sentia quase não a deixava respirar e apenas sua irmã Terra conseguiu protege-la do total isolamento.
Quão forte se tornaria o caminho de tanta delicadeza...

Um sorriso em seus lábios parecia me contar um sonho bom.

Levantei-me com cuidado para não acordá-la e cobri seu corpo com a manta que estava sobre a poltrona.

Um bilhete afetuoso sobre a mesinha encerrou minha visita.

Sem fazer barulho, fechei a porta da rua.

Na primeira lixeira do caminho me pareceu enxergar alguns medos descartados.

Quem sabe ela me buscaria para a próxima conversa?

Angela Schnoor. Rio, 14 de agosto de 2003.

Para minha amiga-irmã Marlene, cuja alma sempre será exemplo de resistência e delicada força.

10 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Maravilhoso! Ursa mãe você não existe.

Também me posso sentar a seu lado no sofá?

Beijinho,

6:54 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Eu já adivinhava que ias te identificar com a Água! percebi certo?
O sofá já está aí para nossos encontros e cuidados mútuos.
Um beijo de Lagoa com direito a Lua espelhada!

9:13 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Claro que adivinhou.

Obrigada por me deixar partilhar o seu sofá.

Um beijinho também.

8:44 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Esqueci-me de lhe dizer Ursa querida, que depois da morte de minha mâe(Água) hà muitos anos atráz, tive que passar a fazer o papel de Terra.

Entendeu-me?

9:10 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Para tal contei com a ajuda de mano Água e mana Ar, já que com pai Ar além de não poder contar por ser menino da mamã, ainda tivemos aborrecimentos.

Beijinho.

10:46 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Num post mais abaixo deixei a hora do meu nascimento.

3:40 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Melga querida, perguntei se tinhas nascido ao cair da tarde exatamente por te perceber mais terra que água nas relações com as pessoas, deixando sua água trancada num pote e sujeita a germinações de vírus, larvas de mosquitinhos etc...

Quando a mãe se vai por vezes tentamos ocupar seu lugar, seja para não sentir tanto a falta, seja por nos imaginar suprindo os vazios da família... só sei que não dá pra ser o que imaginamos que os outros esperam ou desejam de nós não é? Veja um dos primeiros post colocados por 125_azul em seu espaço em que deixou a oração da Gestalt de Fritz Perls. Não dá pra suprir as espectativas de ninguém, nem as nossas!
As histórias de família marcam tanto aqueles que se importam com este núcleo, não?

Um beijo e grata pelas sempre belas palavras que tens para mim.

8:09 PM

 
Anonymous Anônimo said...

Ursa querida não tem problema.

A resposta à sua pergunta é:
O4-O7-48 - 5HOO - Lisboa.

Estou curiosa! Para que serve tudo isto?

Beijinho doce e curioso.

9:43 AM

 
Anonymous Anônimo said...

Quando li a história da Terra também me identifiquei com algumas características.
Realmente a Água ficou guardada e a família é super importante para mim.

De tão guardada a Água foi criando todos os "bichinhos" de que fala.

9:48 AM

 
Blogger Angela said...

Estou sem computador todos estes dias pois a máquina pifou e o rapaz que nos atende nas questões técnicas estava viajando e ainda não pode nos ajudar. Assim que puder volto para Ideália. desta vez fui "apagada" à revelia.
Nesta máquina não me encontro no teclado e tampouco tenho acesso às minhas coisinhas.
Até a volta, em breve, espero!

11:19 PM

 

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