Desde sempre lembro-me viajando em imagens. Primeiro elas fugiram de meu olhar interno e se faziam ver mergulhadas em papel e cores. Depois vieram as palavras e a inspiração dos sonhos, pois foi a realidade que, muitas vezes, trouxe os pesadelos. Em busca de organizar este mundo interior surgiu a Ilha.União de idéias e sonhos, asas que herdei. Apresento-a em pequenos trechos e peço que questionem, perguntem muito para que ela possa tornar-se mais rica e interessante, lugar melhor pra viver.

30.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 16

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma

Conto 16
LOLA, UMA VIDA EM AMOR.
Em homenagem

De todas as coisas que Lola já tinha vivido esta era, certamente, a mais sofrida e inesperada.

Enquanto arrumava a mala com todos os pertences de Sérgio, relembrava seus anos de namoro e casamento. Amava aquele homem, isto seu coração mantinha vivo, embora a morte da confiança batesse junto com seu compasso.

Quantas viagens mundo afora, plenas de descobertas e das mais loucas aventuras amorosas, montados em camelos, ou correndo por estradas européias, mãos e bocas embaralhadas entre freios e câmbios de vários idiomas!
E agora, em cada camisa, cueca ou par de meias, entremeavam-se viagens, sexo, e dor.

Ela o tinha seguido sim. Uma assustadora certeza a levara aos descaminhos da amargura e do abandono pelas ruas de Ipanema até ver o Jaguar prateado estacionado junto ao prédio da outra.

Cega e tonta voltara a casa e resolvera: troca de fechaduras, limpeza dos armários e a grande mala, aberta, estampava agora, o fim de sua história.
Foi à sala, decidida, e voltou com um belo par de chifres que haviam trazido de um safari. Arrumando-o, cuidadosamente, sobre as roupas, terminou com um bilhete: “Aos noivos com os cumprimentos da casa”.
Fechou a tampa da mala como quem dobra a contra capa de um romance bem escrito que deixa o autor na memória.

Sempre fora uma mulher de espírito e não era o momento de perdê-lo. (E, como o sabia necessário à sua sobrevivência!) Com ajuda do porteiro, colocou a mala no carro e entregou-a no edifício dos amantes. Amantes... Eles? Que ironia!
De volta, pela segunda vez naquele dia, agora caía sua resistência e precisava de apoio. Os filhos estavam fora, em férias e se, por um lado era melhor assim, por outro sentia falta de alguém para chorar a perda.

As irmãs chegaram rápidas, solidárias, revoltadas, sofridas de lembranças e temores, destino das mulheres de seu tempo. A outra!
"- Certamente aquela vagabunda estava interessada em seu dinheiro, assim que fizesse seu pé de meia, o deixaria por outro mais jovem...” afirmavam.
Ela sabia que não. Ela o amava e conhecia. Os óculos negros escondiam seus olhos inchados, que teimavam em vê-lo com o mesmo amor.

Com o passar dos meses, evitando todos os telefonemas e tentativas de aproximação de Sérgio, foi recompondo a vida. Saía com as sobrinhas, distraía os amigos com seu eterno bom humor e descarregava sua carência nos bichos.

Em seu bolso do antigo casaco, Violeta, uma ratinha branca, era a companheira de cinema. Pax, a pomba, fazia vôos rasantes sobre as visitas indesejáveis, surgindo do terraço da cobertura, enquanto Kátia, um Quati fêmea, corria pela casa e atacava as latas da dispensa.

Emagrecia valente e tristonha. A cada tentativa de ter outro homem, sempre se ouvia a mesma história. "- Ninguém é como ele... são tolos, transam mal. o amor que fazíamos na banheira... não dá, nada se compara aos nossos dias..."

Um dia, a notícia, A outra estava grávida! Ela quis separar-se legalmente e ele não quis. Ano seguinte outra gravidez e, Sérgio começou a voltar.

As irmãs e os filhos cúmplices deram a ele, a chave da nova fechadura e ela acordou à noite com a saudade aliviada entre beijos e torneiras, na grande banheira da suíte. “Ele era mesmo seu parceiro de amor e sexo!”

As fugidas eram constantes e, em pouco tempo, se tornava amante do marido.
Sorrateiro, ele entrava pelas madrugadas, inventava pretextos e até voltaram a viajar como antes, quando, então, ela negou-se a viver se escondendo.

“A Zeny é burra! Pra que foi ter filhos! Filho ele já tinha, só queria amante, não queria uma família!” Dizia para os íntimos com a consciência de que a sua maternidade a tinha separado do marido-amante. “Foi tudo igual! No segundo filho ele começou a esfriar!”

Zeny não parecia querer saber das escapadas de Sérgio. Tinha virado mãe, conseguiu e mantinha uma boa situação financeira, trabalhava e construía sua vida, já grávida do terceiro filho.

Um acidente de Estrada e Sérgio acaba seus dias.
No velório, duas viúvas, uma delas grávida, choram aquele homem amado.

Um advogado de família vem comunicar que as crianças não tinham registro legal. Seus nascimentos precisavam do reconhecimento da esposa legítima, pois, do contrário, nenhum bem estaria disponível para eles.

Lola reconheceu todas as crianças, inclusive a que nasceu depois. Tinha certeza de que era a coisa justa. Ficou quase sem recursos. Não sabia mesmo fazer outra coisa que não fosse amar!

Em pouco tempo, foi se desfazendo dos objetos das viagens. Eram como malas que se fechavam com historias dentro. Os filhos pouco a visitavam.
Acabou indo morar numa pensão perto de uma irmã. Pobre e doente, mal comia, mas sonhava e dormia na banheira estreita da casa onde a encontraram morta com um sorriso de gozo nos lábios.


©Copyright ANGELA SCHNOOR



29.3.06

Poetas e sábios

"Seja qual for o caminho que eu escolher,

um poeta já passou por ele antes de mim"

Sigmund Freud

... "C'est le désespoir.
Un collier de perles pour lequel on ne saurait trouver de fermoir et dont l'existence ne tient pas même à un fil, voilà le désespoir"...


André Breton

Extrait de"Le révolver à cheveux blanc"Poésie/Gallimard.

Anima - pequenas histórias femininas 15

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma
Vulcana - desenho de Angela Schnoor

Conto 15
INVERSÃO DE PAPÉIS

Fora criada pela avó, a quem tratava por mãe.
Órfã ao nascer, não tinha irmãos, mas os primos e primas faziam-na sentir-se numa grande família. Carinho e educação não lhe faltaram. A avó era dedicada e o ambiente na família era alegre e de muita união. Entretanto eram pobres, moravam na periferia da cidade e logo cedo teve que “pegar no batente” para ajudar nas despesas da casa e ter atendidos, alguns dos sonhos femininos.

Parou de estudar, mal terminou o primário e enfrentou a primeira “casa de família”. Gostava de se vestir com cuidado e sensualidade, era uma jovem e gostosa mulata e em suas idas e vindas pela Central, era sempre paquerada e, às vezes tinha que sair na briga com um machão mais ousado e abusado pois tinha aprendido a se valorizar e a se defender. Desenvolveu uma personalidade forte, confiante, amável e prestativa embora fosse um pouco tímida em questões pessoais.

Gostava de dançar e tinha sempre muitos amigos à volta, mas o coração cedo se deixou fisgar por um rapaz da vizinhança, muito caseiro e como ela, louco para ter uma família.
Casaram-se e foram morar numa casinha dentro do terreno da mãe dele. Filho único, cercado de irmãs, a mãe lhe fazia todas as vontades e achava que a nora deveria seguir seu exemplo. Afinal, ele era bonito, trabalhador e muito sério.

Por desejo do marido, parou de trabalhar e começou a viver para a maternidade. Teve um casal de filhos e sua vida era tranqüila e agradável junto à família, e aos amigos até o dia em que os filhos começaram a crescer. As despesas cresciam e o salário do marido, que não tinha aumento a tanto tempo, foi ficando cada dia mais curto.

Ele não queria, mas teve que ceder quando ela resolveu trabalhar fora novamente. Sua filha, já mocinha, podia cuidar da casa enquanto não estava na escola e o rapaz também teria que tentar um trabalho enquanto não ia servir ao exército.

Conseguiu um emprego como diarista e aos poucos, foi se tornando uma excelente profissional. Aliás, ela possuía qualidades raras entre as domésticas da zona sul: chegava cedo, não faltava ao trabalho e se esmerava em tudo que fazia. Foi ganhando a confiança e o carinho dos patrões. Sua alegria aumentava na medida em que era cada dia mais valorizada no trabalho.

Aí começaram as brigas em casa. O marido, não podendo impedi-la de trabalhar, descarregava sua autoridade, prendendo a filha adolescente, não permitindo qualquer namoro e cobrando da mulher atitudes repressivas das quais ela discordava completamente, pois era liberal no pensar e estava sempre bem informada quanto à educação moderna.

Um dia, o marido chega em casa com a notícia de sua demissão da firma. Foi um baque, mas todos pensaram que fosse temporário.
No início fazia um bico aqui, outro ali e ia levando... Aos poucos, foi se acomodando e vivia em roda de amigos, no barzinho da esquina, quebrando o galho dos vizinhos e...Sendo sustentado pela esposa que, chegando do trabalho, ainda ia direto para o fogão, exausta e sentindo-se cada dia mais lesada.
Todo dia ela pedia e reclamava, reclamava e pedia... Que a família colaborasse nos trabalhos domésticos.

Nos finais de semana, começou a deixar a casa de lado e a sair com as amigas para um bom pagode regado à cerveja.
Aos poucos, a vida em casa foi mudando de rumo, o marido passou a dormir na sala e mal falava com ela. A sogra a responsabilizava pela infelicidade do filho, pois ela não cuidava mais dele como antes. As contas se acumulavam, já que até o fruto dos raros biscates acabava no bar da esquina.

A vida para ela começava fora de casa. Trabalhava cada vez com mais prazer e afinco. Apareceram outras possibilidades para aperfeiçoar-se e, melhor ainda, voltou a estudar para completar o segundo ciclo. Estudar inglês tornou-se seu próximo plano!

Hoje sustenta a casa sozinha e o marido, com a ajuda da filha, cuida das tarefas domésticas enquanto ela estuda.

Parece que ele se encontrou nas prendas do lar! As brigas acabaram, mas ele tornou-se apenas um amigo, e está todo orgulhoso porque, no próximo verão, ela irá com os patrões passar um ano no Esterior!

©Copyright ANGELA SCHNOOR


SOMBRA E LUZ


O olho é como uma câmera fotográfica.
Ao olhar vemos aquilo que só nós percebemos.
Como disse Anaïs Nin: Não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como Nós somos.


Você pode ver lixo ou poesia, miséria ou esperança.Nesta foto você vai ver um monte de lixo, no entanto, dê uma olhada para a sombra que se projeta na parede e terá uma surpresa.
Esta instalação está exposta no Museu de Arte de Israel

Ela ilustra muito bem o conceito Junguiano de “sombra". O que não vemos, e que se oculta em nosso inconsciente, pois o consciente é luz e através dele as coisas são percebidas claramente por nós.


Entretanto por causa do nome: sombra, muitas pessoas acham que aquilo que se diz estar na sombra são conteúdos e potenciais negativos, "ruins" e de fato não são.
Podem ser qualidades muito positivas que ainda não chegaram ao consciente, como é o caso exposto neste trabalho.

Um conto

OS AMANTES DA TORRE EIFFEL

Sentia como se, realmente, se lembrasse daquele dia.
A torre estava sendo inaugurada. A festa, irradiada por todas as estações, enchia o aposento pobre onde fazia sua estréia na vida, no momento em que sua mãe dela se retirava.
Passou a vida com aquela sensação de amor, festa e vida, em estreita sintonia com a face da morte.
Cresceu admirando a Torre em sua potência de ferro. - Dezoito mil peças fixadas em 250 milhões de parafusos, trezentos metros de altura, sem contar a antena! Seus ouvidos de recém nascido tinham registrado as palavras do radialista, e a Marselhesa ecoava em seus sonhos como canção de dormir, deixada como presente pela mãe a quem cultuava como santa.. Tinha dado sua vida por ele e, nenhuma prova de amor seria maior que essa.
Enquanto ia à escola, alimentava um único desejo: ainda seria o "dono da torre”.
Mais que a maioria dos Parisienses, se julgava com direito a ela. Tinham iniciado juntos, sua trajetória de vida e a grande separação de seu abrigo de amor estava, de forma indelével, associada ao monumento.
Conseguiu uma vaga de ascensorista na Torre e, invariavelmente, passava de seu turno, pois sentia aquele lugar como seu lar, mais que qualquer outro. Foi morar próximo ao trabalho para que, às noites, pudesse ficar olhando a silhueta iluminada de seu refugio de sonho.
Ele Era a Torre. Sentia-se garboso e elegante, forte e grande como ela e, ao levar os turistas para cima e para baixo, era como se estivesse lhes mostrando a sua alma.
Aos poucos começou, às custas de tanto ouvir pessoas, a entender e falar vários idiomas, de modo simples e quotidiano e puxava conversa com os jovens que iam lá desgarrados, sem grupo ou guia, explicando as qualidades do monumento e repetindo como um antigo eco:
- “... são cem metros quadrados de base, mil setecentos e noventa e dois degraus...”.
Parecia que descrevia as qualidades da mulher amada.
Esta, por sinal, jamais tivera.
O retrato da mãe sobre a cama do pequeno quarto, recebia toda noite, sua oração devotada e esta era a única relação que mantinha com alguma coisa que não fosse a torre.
Mas, em seu íntimo, sabia ser alguém que conhecia o amor real, a absoluta dedicação que poderia transformar qualquer relação em união inseparável e, foi pensando nisto que começou a colocar anúncios nos jornais mais populares da cidade. E assim criou uma agencia de encontros que prometia aos que a procuravam a garantia do amor eterno.
Marcava os encontros no andar mais baixo da Torre e, uma vez feitas as parcerias, combinava prazos dependendo do envolvimento dos parceiros, para que os casais comparecessem à Torre a fim de receber suas instruções sobre o amor eterno.
O primeiro casal mostrou-se apaixonado ao final de quinze dias de encontros. Levando-os ao último andar da torre, ao final da tarde, uma hora antes do por do sol, mostrou-lhes os quase setenta quilômetros de amplitude de vista da cidade e, emocionado, ensinou-os o segredo do amor eterno.
Assim se seguiram uns cinco casais apaixonados, que recebiam o segredo prometido como um prêmio ao seu dedicado amor.
Até que, enfim, a polícia chegou a tempo de salvar o sétimo par, no exato momento em que um forte empurrão os lançaria em seu vôo para a eternidade, enquanto um velho gravador tocava a Marselhesa.

Em 29 de maio de 2002

©Copyright ANGELA SCHNOOR.


28.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 14

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma

Nightmare- pintura de Fuseli

Conto 14
ESPÍRITOS


Parecia conto de fadas. Sua mãe tinha uma história de infância abandonada. Quando o pai morreu, os bens foram usurpados pela madrasta, o que se transformou na diretriz de sua vida, temerosa de todas as perdas.

Ela foi criada sob o jugo de uma proteção excessiva, pois além de todos os antigos medos maternos, havia nascido prematura e mal ocupava uma pequena caixa onde era alimentada por conta gotas.

Foi crescendo sob uma camada de gordura que lhe garantia a sobrevivência e gerava a circunferência avantajada que mantinha à distância qualquer aproximação física.
Vingou, mas em sua adolescência viveu como Rapunzel, trancada na torre dos cuidados maternos. O pai vivia trabalhando e não tinha espaço disponível em casa para um contato com ela. A mãe se tornava enorme quando alguém se aproximava de “sua” cria.

O medo tornou-se maior quando o pai morreu.

Duas mulheres sozinhas! Uma cuidaria da outra sempre, não podiam perder-se.
Ao menos agora, recebendo a pensão do pai, podia comer e comprar, comprar e comer, comprar e comprar sem preocupações.

Tentou comprar um homem por quem se apaixonou. Já tinha idade bastante para perceber que ele não era muito chegado à mulheres, mas aí é que, para ela, residia o seu charme.
Estava acostumada à convivência feminina e a segurança do amor apenas espiritual a tranqüilizava bastante. Podia cuidá-lo e obter sua companhia. Preenchendo materialmente, os vazios de uma vida humilde, nada mais era exigido dela.

Tentava encantá-lo, certa de não conseguir senão uma boa companhia intelectual. Sua aparência a protegia, e justificava o distanciamento dele embora fosse, secretamente, seu martírio.
Quanto mais rejeição, mais compras e comidinhas. Quando a conta no banco se esgotava... ansiedade, memória, perda, caixa de papelão, conta-gotas... mais comida....até que o dia de pagamento chegasse e a pensão do papai colocasse, temporariamente, a segurança em ordem.

Continuava virgem para o prazer da mãe que fingia não ver as revistas pornô guardadas e os gemidos noturnos na cama ao lado.

O “amigo” adoeceu e faleceu com uma doença estranha, sem que o amor se consumasse.
Após sua morte, ela começou uma busca espiritual intensa. Andou por terreiros, cartomantes e tentou todas as esoterices do momento para preencher seu vazio, até que encontrou - se com “as moças”.

Eram duas, davam aulas sobre extraterrestres, espaçonaves, terceiro milênio e “recebiam” espíritos de Mestres que prometiam iluminação e salvação das catástrofes previstas para aqueles que não acreditassem e não reverenciassem suas ordens e desejos.
As sessões aconteciam em sua pequena casa. A mãe, a princípio, participava mas aos poucos, foi sendo alijada como de pouca fé. Com o tempo, as duas foram ficando, ficando, e ela comprando, comprando... coisas para a casa, roupas e livros para as moças e comida especial para os Mestres que se tornavam cada vez mais presentes e exigentes. Em troca, “baixavam” no corpo das duas dando a ela toda a atenção desejada. Fazia confidências e recebia conselhos.

Um dia, sob a orientação dos “Mestres”, resolveu internar a mãe num asilo. Estava velha e doente, implicava com as moças. e reclamava quando sua parte da pensão tinha que cobrir os gastos, adicionais, com os “Espíritos”.

Na primeira noite sem a mãe, os Mestres baixaram enquanto ela dormia e cobriram de prazer seu sexo adormecido.

Hoje, ela vive com “Eles”. Nada compra, passou sua conta bancária para “as moças” e nunca mais engordou pois come praticamente, de conta-gotas.


©Copyright ANGELA SCHNOOR

Caronte ou A Viagem de Volta


A VIAGEM DE VOLTA.


Não tinham jantado. Passavam muito tempo trabalhando lado a lado no escritório da casa. Já era um hábito esquecerem da vida em frente à tela de seus computadores pessoais. Quando a fome chegou já eram altas horas.

- Que tal irmos à loja de conveniências, comprar algo diferente para comermos?
- Ótimo. Também já estou com fome. Assim que terminar este texto, iremos.

E assim fizeram. Aproveitaram para levar o cãozinho ao seu ultimo passeio do dia. Bateram a porta dos fundos e o elevador de serviço os levou direto à garagem. O gato preto ficava sempre em casa.

Engraçado como o ser humano projeta partes suas em bichos, amigos, livros e outras coisas do quotidiano. O gato era a parte mais calma dos dois.

A loja habitual fechara as portas mais cedo. Em dias de inverno as ruas desertas não estavam propícias ao comércio da madrugada.
No caminho de volta, a idéia de um simples macarrão instantâneo já se delineava misturada à preguiça, quando divisam o luminoso de uma outra loja menos conhecida. Nem todo o desejado ali havia, mas estavam livres do fogão.

Ao abrir a porta do elevador, já no andar de moradia, eles encontram a porta de entrada aberta. Uma surpresa e uma rápida revisitada nos movimentos da saída e... A memória de ambos nada registrara.

- Deixamos a porta aberta.
- É, precisamos estar atentos, estamos ficando velhos e esquecidos. Ainda bem que temos porteiros e o prédio é calmo. Nos dias de agora é um risco...
Um carinho na cabeça do gatinho, um pote de ração para o cãozinho e, seguem rumo ao microondas para saciar a fome.

Já estavam acostumados à vida a dois, recuperada com a saída dos filhos para construir novas famílias.
Enquanto um deles pega os pratos, o outro aquece a comida e, como numa dança em velha parceria, os passos não precisam ser ensaiados, se sabem de cor.

Tanta fome e nenhum olhar de receio pela casa. A atenção não registra a porta do banheiro de serviço entreaberta, fora do hábito.

O jantar é apreciado como só o sabem aqueles que estão famintos!
Louça lavada, cozinha arrumada, cão e gato refletindo a paz interna dos dois.

Mais um pouco de trabalho até que o estômago não atropele o sono e o beijo de boa noite encerre o dia.

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Atrás da porta, do banheiro de serviço, ele espera pacientemente que toda a rotina se acabe.
A porta aberta foi o ensejo que aguardava há muito tempo.

A luz do andar se apaga, mas ainda há movimento no escritório. Teclas soam suavemente e, quando em vez, algum murmúrio de vozes o mantém alerta.

Afinal,... Som de água no banheiro e a luz do quarto que se acende para apagar, em seguida.
Um som. Música! Ah!... Como as crianças, eles dormem com musica! Melhor assim.

Escuro na casa. Apenas a luz da rua impede o negro total.
Pé ante pé, ele percorre os aposentos. Seu andar é suave como a sombra da noite.
Já tem o hábito de fluir no escuro.

Escuta atento. Já ressonam. É hora de atravessar o corredor que leva ao quarto.

O cão não late. Um pedaço de bolo de mel o distrai, como sempre foi e será.

Nos copos à cabeceira, despeja um pouco das águas de Estige, o rio.

Deitado junto aos dois, dirige a longa viagem.



Angela Schnoor.

27.3.06

Introduzindo Animus - questões masculinas


META METRÓPOLE


O paletó cinza já não era suficiente.
A gravata preta correta no colarinho engomado, os duros sapatos de verniz, o cabelo cortado rente,...Estava próximo da perfeição. Mas, a dor no estômago trazia gotas de suor à fronte e quase estragava, com o toque humano, a aparência desejada.
Uma tarde, ao sair do escritório, olhou o prédio de concreto, reto, alto, imponente, com suas janelas fumées, e...Teve a idéia!
No caminho de casa havia uma loja de materiais para construção.
Embrulho embaixo do braço, atravessou o quarteirão, entrou em casa e, direto à cozinha, despejou seu conteúdo em copo d'água.
Mistura pronta, sentado em frente ao jornal da TV, engoliu rapidamente o refresco de cimento que o faria perfeito !

Angela Schnoor

Anima- pequenas histórias femininas 13

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma.


Conto 13
SEM SAÍDA


Quando a conheci, mais que sua estatura e a voz muito grave, chamou-me a atenção o rosto ferido e azulado como o de um rapaz que acabasse de escanhoar a barba pela manhã.

Era bonita, educada e amável, embora um tanto fechada e com um semblante muito triste.
Pouco falava, ao contrário da jovem que a acompanhava, uma loura coquete e bem feminina. Tornava-se evidente a relação das duas, eram um casal. E não fosse pelos pequenos, mas indubitáveis seios da morena, poderiam passar por um casal comum.

Uma amiga chegada contou-me sua história.

Seus pais eram imigrantes portugueses vindos de uma pequena aldeia, onde viviam com parcos recursos materiais e culturais.
Tiveram esta única filha em idade avançada e ela representava todo seu orgulho e esperança. Criaram a criança com todo o mimo, os melhores colégios, os vestidos mais bonitos, as bonecas mais cobiçadas.

Ela não ligava para nenhuma destas coisas. Gostava de correr com os meninos no recreio e preferia jogar bola, embora as roupas femininas atrapalhassem e os pais a repreendessem.
Volta e meia chegava em casa com os vestidos sujos e rasgados e acabava por inventar tombos ou empurrões para se safar dos castigos.

A puberdade começou a chegar e o primeiro sintoma estranho foi a voz. Principiava a engrossar, caindo nos súbitos falsetes iguais a dos colegas de escola.
Como começassem a aparecer alguns pêlos no buço e a menstruação não chegasse, uma amiga dos pais sugeriu que consultassem um médico.

O casal, temeroso da opinião da vizinhança, preferiu crer em problemas de garganta e rouquidão para justificar os fatos. Eram bastante ignorantes e a mãe nos seus cuidados ao bebê, jamais havia percebido o que lhe disse o médico naquela tarde.

- “Sua criança tem os dois sexos”.“É uma anomalia rara, mas acontece”
- “O que está a nos dizer Senhor Doutoire?”
- “Tento me explicar melhor, aqui temos uma criança que nasceu menino e menina ao mesmo tempo! Ela tem, juntos, vagina e pênis.”
- “Mas há uma solução. Podemos escolher um dos sexos e operá-la e tudo ficará normal, sem problemas. Cabe aos senhores, como pais e responsáveis, escolher o procedimento”.

- Ora veja lá, mas se sempre a tratamos como menina, sempre usou vestidos e até seu nome é o da Senhora de Fátima, o que haveríamos de escolher?” Disse a mãe.
- “E o que dirão na vizinhança e no colégio, se seu sexo for mudado? Não podem nem saber de tal situação!”.
- “Está resolvido. Ela continuará a ser menina e nos dará netos para continuarmos nossa família brasileira”.

Assim, nas férias, Fátima foi operada. Seu pênis foi cuidadosamente extirpado, a recuperação, para afastar curiosos, foi passada numa pensão em uma cidade serrana. E, em pouco tempo, às custas de uma pequena ajuda hormonal, seus pequenos seios começaram a despontar.

Seus pais, cegos pelos preconceitos, esperam até hoje, um neto.

Afinal, sua voz grave pode até ser sensual, só que ela jamais menstruou e uma incomoda barba teima em crescer na face deste ser castrado, pois a única coisa que todos omitiram, em prol da opinião pública, é que aquela criança nasceu sem os órgãos internos femininos!


©Copyright ANGELA SCHNOOR



Qual é a cor do vento?


QUAL É A COR DO VENTO?

Se a música do mar abraça o barco
e me naufraga a vida,
Qual o recado que me envias
com teu silêncio constante
enquanto leio as entrelinhas
de tudo o que me evitas...

Qual o ritmo do instrumento
que me habita o peito
e pulsa a morte do que quis tão vivo?

É azul o beijo que não trazes
junto às flores transparentes
que jogaste à um canto,
quando o susto invadiu a tua alma
com as certezas
de que tudo o que temias era incerto
e sempre.

Tão igual à cor do vento que não sabes!

Angela Schnoor.

Anima - pequenas histórias femininas 12

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma

Conto 12
O CASACO


Durante toda a vida lembrava de ter sido forte.
Na infância, nas poucas vezes em que estivera doente a mãe se desvelava em tantos cuidados que mais lhe pareciam um aprisionar.
Gostava de sentir-se amada mas, aquilo era tão sufocante para seu temperamento impulsivo e independente que preferia estar junto ao pai que a tratava como igual e em cuja companhia sempre aprendia algo sobre a vida e as pessoas.

Cresceu se destacando dos irmãos pela semelhança com o pai. Às vezes brigavam, quando ele tentava exercer sua autoridade, mas logo desistia. Ela era, realmente, impossível!

Sua vida profissional desenvolveu-se rapidamente. Gostava de estar entre os homens e tinha certa complacência arrogante para com as mulheres, o que gerava mútua antipatia.
Por isto, tinha raríssimas amigas pois a maioria não a entendia e a via como rival.

Acabou casando e tendo filhos mas o marido, aos poucos, foi se mostrando dependente e inseguro. Apaixonado por ela, fazia tudo para agradá-la e, muitas vezes, tomava atitudes como as da mãe: sufocantes, fragilizantes e sem a menor percepção de suas reais necessidades.

Criou uma imagem tão forte para si mesma que ninguém percebia sua carência afetiva, escondida atrás do medo de se tornar frágil e dependente. Como gostaria de ser amada por alguém que não se intimidasse com ela! Queria que percebessem a sua ternura e feminilidade sem se aproveitar para dominá-la e engolfá-la. Desejava ardentemente que alguém olhasse para ela e realmente, a visse!

A vida conjugal foi sendo levada. Não havia brigas e o sexo, quando havia, era quase frio. Não fosse a amizade que tinha pelo marido, que era um bom pai e sempre estava ali, presente, há muito já teria se separado...
Trabalhava arduamente para sustentar a família pois o marido gastava muito e não ganhava tanto quanto ela.

A gerência da fábrica era sua vida. No meio dos operários se sentia em casa e o faturamento estava sempre em alta, fruto de suas decisões práticas, racionais e experientes. Era também muito humana e generosa conseguindo uma popularidade invejável entre os funcionários.

A fábrica crescia e abriu um campo para assessores. Novas admissões foram feitas e ela marcou uma primeira grande reunião tendo em vista a abertura de nova linha de produção.
Naquele dia, não acordou bem disposta, parecia que uma gripe se aproximava...
-"logo hoje! Tanto trabalho pela frente, sem hora para terminar o dia, e esse cansaço! "

A reunião se prolongava, o ar condicionado estava muito forte e, sem perceber, começou a se encolher de frio. Subitamente, um casaco lhe é colocado sobre os ombros.
Levanta a cabeça e seu olhar encontra o sorriso da loura alta e bela que conseguiu vê-la transparente!
Seu coração bateu descompassado e, como mágica, o amor desejado nasceu sob o aconchego do casaco de couro daquela mulher que a compreendia!


©Copyright ANGELA SCHNOOR



26.3.06

Perfeição? onde?

IMPERFEIÇÕES?

Passo pela rua e vejo uma jovem paralítica, arrastando-se sobre muletas.
Seu rosto é tenso e sofrido.
Entro em uma garagem e uma garotinha sobe escadas, amparada pela mãe.
Ela tem o corpo todo torto e as pernas sem firmeza. Seu rosto, entretanto é suave e risonho.

Meu primeiro sentimento é de compaixão. Como deve ser difícil viver a juventude com esta carga!

Pouco depois, penso em quantos de nós temos defeitos, tortuosidades, sofrimentos e impedimentos de bem viver que, por não estarem aparentes, nos permitem negá-los, esconde-los de nós mesmos, fugindo para não os enfrentar até quando for possível!

Benditas criaturas! Têm que enfrentar muito cedo, sem escapes, suas vidas difíceis e podem chegar à velhice com a alma evoluída e o espírito lúcido.

Quando os valores materiais decrescem e a beleza acaba, a energia diminui, o corpo não mais responde aos ditames da vontade, temos forçosamente que enfrentar o espírito esquecido enquanto adulávamos a aparência e a forma física.

Quanto tempo perdido na crença de nossa pseudo perfeição!

Nem todos temos este descompasso mas, certamente, estes seres não precisam da minha piedade.
São apenas o espelho físico de minhas outras imperfeições e o retrato de meu possível amanhã.


ANGELA SCHNOOR

25.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 11

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma.


Conto 11
CONSUELO

O cigarro entre os dedos tingidos de ocre causou tanto espanto à minha estética exigente, como o sorriso que ostentava dentes escuros como mostarda.

Mas devo confessar, era bela, e os cabelos grisalhos presos num coque em desalinho faziam contraste interessante com o corpo magro, o porte esguio e nobre e o rosto como se fora talhado em pedra.

Os olhos, negros e grandes, franziam em pequenas rugas que tentavam disfarçar, no esgar dos lábios, o sorriso enigmático de quem sabia das coisas da vida.

De sua vida eu sabia, apenas, que tinha um filho longe e o forte sotaque me remetia para mosaicos e cores espanholadas. Mas uma coisa minha alma adivinhava ao cruzar aquele olhar: tinha sido e ainda era, uma mulher da vida, não da morte. Cafetina, talvez.

Queria saber da ansiedade que lhe consumia os dias e pintava de ocre seus velhos dedos magros e do sempre sorriso, mordaz; quase sempre cúmplice, como quem sabe das coisas da vida.

Às vezes deixava a casa da amiga e voltava para o Rio. Onde morava? Com quem? O filho longe... Ouvia em conversas vagas, distantes. E voltava, de repente, silenciosa e amarelada trazendo de volta o mesmo constante sorriso de quem sabe das coisas da vida.

Um dia tomei coragem e perguntei o porque de seu nome. O que tinha causado a escolha, Era comum em sua terra?
Começou a falar mansamente, com o sorriso triste de quem sabe das coisas da vida : "- Minha mãe teve um amor. Ele se foi, como tantos, num navio.”

Ela ficou como fruto, maturando em saudade e abandono e tornou-se a Consuelo de sua mãe. A partir de seu nascimento estava traçada sua história: servir de consolo a quantos sofressem abandonos.

Desde pequena procurava fazer tudo que pudesse por um sorriso de sua mãe.
Todas as noites, ao lado do espelho e da fraca luz, fitava embevecida aquela mulher que pintava os lábios de carmim e balançava os negros cachos antes de sair para o cais, levando-a pela mão.

Sentada num canto, do sempre mesmo bar, via a mãe acender seu cigarro enquanto conversava e bebia com algum homem recém chegado em um navio qualquer.
Depois adormecia, encolhida, até que fosse acordada para a volta à casa.
Quase sempre já nascia um raio de sol que tingia de ocre as pedras do caminho e a bruma do cais.

Em casa, a mãe, despida, jogava-se na cama e a abraçava pedindo:
- “Venha cá, mi Consuelo”.

E ela ia...e fazia de tudo para conseguir ser o prazer de sua mãe.

Acabou por aprender aquele sorriso de quem sabe das coisas da vida.
E o cigarro, aceso entre os dedos, reproduz hoje tantas lembranças, tingindo de nascer de sol a bruma triste do maturado abandono.

Sabia ter nascido para ser o Consuelo!


©Copyright ANGELA SCHNOOR



SCHNOOR 360º - Ao vô Emílio

SCHNOOR - BREMEN



Estas são fotos do bairro SCHNOOR em Bremen, Alemanha

Da família materna trago raízes Lusitanas e mouras, da família paterna recebi uma história de Vikings que foram para o norte da Alemanha onde existe,até hoje, este lindo bairro de onde partiu a construção da cidade de Bremen. Meu bisavô paterno, chamado carinhosamente vovô Emílio, acabou por nascer na França, em Chateauroux, de onde veio para o Brasil onde tornou-se um grande engenheiro construtor de estradas pelo Brasil, Argentina, Bolívia etc.
Este grande homem nasceu em 29/03/1855 e faleceu em 1923 no RJ.
este post é em sua homenagem.

Emille Armand Henri Schnoor

OUTONO

Não sei se por ter nascido no outono ou pelas cores e leveza do ar que se promete frio, é minha estação preferida.

SILO

DA PAIXÃO QUE ME BROTA
E ME FAZ PLENA DE OFERENDAS,
TRAGO-TE ALGUMAS FLORES,
ALGUNS FRUTOS,
UM POEMA.

O MAIS, FICA ENCELEIRADO
A AGUARDAR O TEMPO
DE NOITES FRIAS E GELEIRAS
ONDE A INVERNAL CARÊNCIA
TE GUIE ÀS PORTAS DO MEU SILO.

Angela Schnoor


23.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 10

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma.

Teen Queen, Foto Jan Saudek 1987

conto 10
A SALVADORA
As censuras da infância não lhe haviam aprisionado a alma.
O temor da mãe estava localizado nas questões físicas. Era o contato, os corpos!
Para aquela mulher o afeto era um desconhecido, nem o desconfiava sob nenhuma pele, muito menos a da pequena filha que tinha o "mau hábito" de falar com as pessoas tocando-lhes as mãos, os braços, enlaçando-se nos torsos das pessoas, em abraços.

Que se cuidasse a menina. Ia acabar, era quase certo, tornando-se uma puta.
E, quando menos não fosse, incomodava as pessoas com seu toque e carinho.
No colégio, ao brincar de roda, as mãos ficavam aflitas para que acabasse a dança. Devia estar incomodando o reter daquelas mãos nas suas.
Foi se tornando dura e aparentemente fria como cabia bem a uma menina educada. Era tão obediente e temerosa que, quando nos habituais castigos, as horas passadas de cara para a parede não eram contadas pela mente, pois esta vagava em viagens inimaginadas por sua carcereira. Não, sua alma ainda não sabia o que era um castigo.
Já mocinha, o perigo crescia com seu corpo.
Não mais tocava as pessoas ao falar-lhes, e a timidez quase lhe impedia a fala como se as palavras tivessem mãos e braços e pudessem selar também, o seu destino.

Tinha tendência a ser puta, embora nem soubesse direito o que era isso.
Mas o corpo de mulher, que cedo despontava, era uma ameaça constante.
Os pêlos! Sua pele coberta de penugem loura e fina, como uma folheação a ouro era, ao dizer da mãe, mais uma certeza: sinal de sensualidade. Ia ser puta.
Mas, nada lhe ensinaram sobre amor e,ao lado da dor, o sentimento dominava sob a forma de fantasia cobrindo as distâncias físicas que a separavam das pessoas.

Será que as putas sentiam aquilo?
Um dia levou uma surra quando disse que uma mocinha do bairro parecia puta. Será que havia se enganado? Talvez aquela condição fosse um privilégio seu!
Por que este estigma?

Sua alma confusa vagueava em fantasias tontas e seu cavalheiro viria salvá-la desta condição terrível.Passou a se apaixonar por figuras distantes e intocáveis.
Já bem moça, sonhava com um artista que via na TV. Ao ouvi-lo tocar as suas musicas sabia ser o homem que queria. Romântico e apaixonado, tão diferente dos rapazes perigosos e insensíveis que viviam,sedutoramente,lhe dizendo galanteios.
Entrou cedo para a faculdade. Sempre fora a caçula desde as turmas do colégio. Ali, parecia a salvo, entre as amigas.
A Universidade inaugurou um espaço cultural.
Um dia, assistindo a uma palestra sobre música,lá estava o seu herói em pessoa! Com o coração aos pulos, percebe o interesse dele em insistentes olhares. Após o encerramento, em meio ao bate papo coletivo, recebe a proposta para um encontro.
O bate-papo na lanchonete era vulgar e óbvio, mas ela não percebia sobre o que ele falava. Ao convidá-la para ir à sua casa onde tocaria e cantaria só para ela, disse as palavras mágicas, que confirmavam seus sonhos de resgate.
Já sabia tudo sobre a vida dele. Embora entrado em anos, morava com os pais em seleto prédio da zona sul da cidade. Não tinha porque negar o encontro.
Era seguro.
Quando saltaram do táxi, ela estranhou o lugar, mas preferiu pensar que se enganava, pois teve vergonha de questionar e afinal afastar, com seu comportamento tolo, a oportunidade do recital privado.
Entraram num apartamento escuro e sujo e alguma coisa tocava um alerta em sua alma criança. Àquela altura da vida, instruída pelas colegas, já tinha uma vaga idéia dos perigos que corriam as moças do seu tempo, mas sua alma não queria crer no que intuía.

Lembrou que estava menstruada e, em segundos, sua segurança foi restaurada. Haviam lhe afirmado que os homens não tocavam em moças naquele estado.
Mais tranqüila ficou quando viu o violão em suas mãos e as primeiras notas eram dedilhadas.

Mas, não durou muito o encanto. Veio um abraço, um beijo e... Como num passe de mágica aquele homem a subjugou. Embora esperneasse com toda a energia, as forças, fora a surpresa, eram muito desiguais. Sob o seu domínio, a alma em pânico, passou em revisão torturante seus sonhos de menina.
Não sabia quanto tempo havia durado aquela cena, só era claro que um véu caíra de seus tolos dezessete anos e, uma vez libertada, o desespero tomou conta de seus atos.Enquanto gritava em prantos, entre ingênua e ridícula, reivindicando a reparação num casamento, seu herói ria descaradamente e zombando dela em riso frouxo, despiu-se e entrou sob o chuveiro.
Neste exato momento, pela primeira vez sua alma foi castigada.A dor rasgando o peito, impotente e sabendo - se à beira de um colapso, eis que se sente salva, de repente.
Cara limpa, às gargalhadas, despe a roupa que não foi tirada e junto ao insensível vilão mergulha, no mesmo banho, a puta que a salvava.
©Copyright ANGELA SCHNOOR


As doze crianças


ALEGORIA

"...E era manhã, quando Deus parou diante de suas doze crianças e, em cada uma delas, plantou a semente da vida humana.Uma por uma, dirigiram-se à Ele para receber sua dádiva.

- A ti Áries, dou a primeira semente para que tenhas a honra de plantá-la. Para cada semente que plantares, mais outro milhão de sementes se multiplicará em suas mãos. Não terás tempo de ver a semente crescer pois tudo o que plantares criará cada vez mais e mais para ser plantado. Tu serás o primeiro a penetrar o solo da mente humana levando Minha Idéia. Mas não cabe a ti alimentar e cuidar dessa Idéia, nem questioná-la. Tua vida é ação, e a única ação que te atribuo é a de dar o passo inicial para tornar os homens conscientes da Criação.
Por este trabalho Eu te concedo a Virtude do Respeito por Si mesmo.
Em silêncio, Áries voltou ao seu lugar.

-Touro, a ti Eu dou o poder de transformar a semente em substância. Grande é a tua tarefa, e requer paciência; pois tem que terminar tudo o que foi começado, para que as sementes não sejam desperdiçadas pelo vento. Não deves questionar, também não deves mudar de idéia no meio do caminho, nem depender dos outros para a execução do que te peço.Para isso Eu te concedo o Dom da Força. Trata de usá-la sabiamente.
E Touro voltou ao seu lugar.

- A ti Gêmeos, Eu dou as perguntas sem respostas, para que possas levar a todos um entendimento daquilo que o homem vê ao seu redor. Tu nunca saberás porque os homens falam ou escutam.E em tua busca pela resposta encontrarás o Meu Dom reservado a Ti: O dom do Conhecimento.
E Gêmeos voltou ao seu lugar.

-A ti Câncer, atribuo a tarefa de ensinar aos homens a emoção. Minha idéia é que provoques neles risos e lágrimas, de modo que tudo o que eles vejam e sintam desenvolva uma plenitude desde dentro. Para isso, Eu te dou o Dom da Proteção, para que sua plenitude possa me multiplicar.
E Câncer voltou ao seu lugar.

- A ti Leão, atribuo a tarefa de exibir ao mundo Minha Criação em todo o seu esplendor. Mas deves ter cuidado com o orgulho, e sempre lembrar que é Minha a criação e não tua. Se o esqueceres serás desprezado pelos homens.
Há muita alegria em teu trabalho, basta fazê- lo bem. Para isso, Eu te concedo o Dom da Honra.
E Leão voltou a seu lugar.

- A ti Virgem, peço que empreendas uma análise de tudo o que os homens fizerem com Minha Criação. Terás que observar com perspicácia os caminhos que percorrem, e lembrá- los de seus erros, de modo que através de ti, minha Criação possa ser aperfeiçoada. Para que assim o faças, Eu te concedo o Dom da Pureza de Pensamento.
E Virgem voltou a seu lugar.
- A ti Libra, dou a missão de servir para que o homem esteja ciente de seus deveres para com os outros, para que ele possa aprender a cooperação, assim como a habilidade de refletir o outro lado de suas ações. Hei de te levar onde quer que haja discórdia.Por teus esforços te concederei o Dom do Amor.
E Libra voltou a seu lugar.

- A ti, Escorpião ,darei uma tarefa muito difícil.
Terás a habilidade de conhecer a mente dos homens, mas não te darei permissão de falar o que aprenderes. Muitas vezes te sentirás ferido por aquilo que vês e em tua dor te voltarás contra Mim, esquecendo que não sou Eu, mas a perversão de Minha Idéia, o que te faz sofrer.
Verás tanto e tanto do homem quanto animal, e lutarás tanto com os instintos em ti mesmo, que perderás o teu caminho. Mas, quando finalmente voltares, terei para ti o Dom Supremo do Propósito.
E Escorpião voltou a seu lugar.
- A ti Sagitário, peço que faças os homens rirem, pois entre as distorções da Minha Idéia eles se tornam amargos. Através do riso darás aos homens a esperança, e por ela voltarás seus olhos novamente para Mim. Chegarás a tocar muitas vidas, ainda que só por um momento, e em cada vida que atingires, conhecerás a inquietação. A ti darei o Dom da Infinita Abundância, para que possas expandir generosidade o suficiente, até atingir cada recanto onde haja escuridão e levar aí a luz.
E Sagitário voltou a seu lugar.
- De ti Capricórnio, quero o suor de tua fronte para que possas ensinar aos homens o trabalho. Não é fácil tua tarefa pois sentirás todo o labor dos homens sobre teus ombros.
Mas para a superação de seus fardos, te concedo o Dom da Responsabilidade.
E Capricórnio voltou a seu lugar.

- A ti Aquário dou o conceito de futuro, para que através de ti, o homem possa ver outras possibilidades. Terás a dor da solidão, pois não te permito personalizar o Meu amor. Para que possas voltar os olhares humanos em direção a novas possibilidades, Eu te concedo o Dom da Liberdade de modo que, livre, possas continuar a servir a humanidade onde quer que ela esteja.
E Aquário voltou a seu lugar.

- Finalmente, a ti Peixes dou a mais difícil de todas as tarefas. Peço- te que reunas todas as tristezas dos homens e as traga de volta para Mim. Tuas lágrimas serão, no fundo, Minhas lágrimas. A tristeza e o padecimento que terás de absorver são o efeito das distorções impostas pelo homem à Minha Idéia, mas cabe a ti levar até ele a compaixão, para que possa tentar de novo. Por esta tarefa, a mais difícil de todas, eu te concedo a maior Dádiva: tu serás o único de Meus doze filhos que Me compreenderá. Mas este Dom do Entendimento é só para ti Peixes, pois quando tentares difundi- lo entre os homens, eles não te escutarão.
E Peixes voltou a seu lugar.

" Então Deus disse:
Cada um de vocês tem uma parte de Minha Idéia.Voces não podem confundir nenhuma parte nem devem desejar trocá-las entre si. Pois cada um de vós é perfeito, mas não compreendereis isso até que vós doze sejais Um. Pois então, o Todo da Minha Idéia será revelado a cada um.

E as crianças saíram, cada uma deteminada a fazer seu trabalho o melhor possível, para que pudessem receber a sua dádiva. Mas nenhuma compreendeu inteiramente sua tarefa ou sua dádiva e quando voltaram confusas, Deus disse:" Cada uma de vocês acredita que a as dádivas dos outros são melhores. Portanto, permitirei que vocês a troquem".

Naquele momento, cada criança ficou exultante ao considerar todas as possibilidades de sua nova missão.
Mas, Deus sorriu quando disse :

" Vocês voltarão a Mim muitas vezes pedindo para serem dispensados de sua missão e cada vez, Eu concederei a vocês os seus desejos. Vocês irão por incontáveis *encarnações, antes de completarem a missão original que lhes determinei.
Eu lhes dou um tempo incontável para fazê-la, mas somente quando ela estiver feita, vocês poderão estar Comigo."

MARTIN SCHULMAN
(Extraído de "Os Nódulos Lunares" Astrologia Cármica -1
Coleção Astrologia Contemporânea- Editora Ágora, S.Paulo 1975)

* Para os que pensam de modo diverso do autor, sugiro que leiam -"experiências" em vez de encarnações. Conceito que, na minha opinião, sob o ponto de vista da astrologia é tão válido quanto. Angela Schnoor.

22.3.06

Anima - pequenas histórias femininas 9

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma.

Narcissus - John W. Waterhouse


Conto 9
BELEZA


Tinha sido uma criança linda e a mãe exibia, orgulhosa, a sua beleza até que se tornou adolescente.
Muito cedo, o corpo de mulher já despontava, atraindo os olhares desejosos dos rapazes da pequena cidade onde morava e a admiração do pai, a quem adorava.

A repressão da mãe, às suas manifestações de afeto, começaram a doer em seu coração sensível.
-“Cuidado com os homens, vai virar puta!”
-“Vão abusar de você”
-“Não pega nas pessoas, é feio! “

A menstruação fez a carga aumentar:
-“Só quero ver se você ficar grávida! “
-“ Homem só quer se aproveitar!”
O primeiro namorado já tinha ouvido a seu respeito:
-“Com aquele corpo? Já deu! Vai lá que dá pé.”

Ela era pura e inocente. A mãe esquecera de lhe orientar pois temia o sexo, a vida e tudo o que a filha representava de perigo para ela.
Na primeira investida do namorado, não entendeu nada, era frígida e não sabia. Os bloqueios da mãe tinham feito o estrago.
Aos poucos ele a sodomizou sob ameaças e agressões sem nunca lhe dar prazer.
Sua verdade porém é que se achava impura e portanto, fadada a permanecer naquela relação pois nenhum outro homem a aceitaria.
Amedrontada, escondia da mãe as manchas roxas pelo corpo, temendo sua reação. A mãe também a surrava!

Estudava em colégio de freiras e a culpa aumentava à cada aula de religião, até que um dia, sentiu empatia e confiança em uma professora. Contou-lhe suas amarguras e ela a orientou.
Em pouco tempo se libertava do sádico namorado e se sentia feliz outra vez!
Quis até tornar- se religiosa mas a vida foi cumprindo as pragas da mãe.

Encontrou um homem mais velho no qual confiou mas que a estuprou na primeira oportunidade. A raiva pelos homens crescia e, através de uma amiga, procurou uma terapia para resolver sua frigidez, sua raiva, seu desamor, a dor e a decepção diante da vida.
Passaram-se muitos anos, sempre defendida do amor, dos homens e do sexo.

Mais velha, conseguiu amar e confiar em alguém. Casou e teve uma linda filha a quem procurou orientar para que fosse feliz, tratando de forma natural o sexo e o amor.
Seu marido, meigo e compreensivo, aos poucos ajudou-a a se libertar do medo e da desconfiança mas, com o tempo, foi se transformando num bom amigo.

Quando a meia idade foi chegando, começou a ser feliz sem receios. A beleza física não é mais seu atrativo. Desenvolveu outros valores e agora pode demonstrar amor sem correr riscos de ser incompreendida.

Só que o peito dói quando vê o marido, que não a toca mais, admirando a beleza da filha adolescente.


©Copyright ANGELA SCHNOOR

SALVE HENRIQUE - criança primavera

-Valentine- desenho de James Browne

Fazem tres anos que viviamos mais uma das tragédias que levaram, um após outro, homens de nossa família , pai e dois irmãos. Faziam 19 anos que não ouvíamos sons de pequenos em nossas casas .

Foi quando, em 23 de março de 2003 - nasceu Henrique Penido Malaia, o primeiro de uma série de quatro meninos que deverá se completar, por enquanto, em junho- julho deste ano.

Henrique foi nosso primeiro broto - luz e veio com a primavera pois, trouxe consigo a esperança e a fé no renovar da vida e parece-nos que combinou uma reposição de meninos nessa clã tão matriarcal.

Hoje, esta criança tão querida completa três anos e já mostra ao que veio. Pleno de força e vontade aliadas a uma doçura sem par, foi o primeiro a unir Brasil e Europa, resgatando nossa ancestralidade.

Salve querido e amado pequeno de todos nós.

Que sua alegria te mantenha com o brilho dos felizes.

Sua família brasileira abraça a família portuguesa e angolana na esperança de que, um dia , este mundo não tenha mais fronteiras.

Para esta (tia) vovó você será sempre seu primeiro neto, aquele que representa a esperança retida na caixa de Pandora.

Com muito amor e alegria por sua existência, Vovó Anha e Vovô Beto.


Verde musgo da desesperança


VERDE MUSGO DA DESESPERANÇA

Sim, de tanto te esperar,
Já faço parte dessa casa aberta.
Emparedei-me à tua ausência.

E, sustento a casa
com a minha vida.
E, sustento a vida
com essas paredes
para que o tempo resista
e as rachaduras nos muros
nos façam uma só espera.

Meus seios despejam cal
sobre o reboco envelhecido
para que nos reconheças
tal como deixastes um dia.

De tanto ser vista me ceguei,
Não quero te saber distante.

Já sou musgo, esquadria,
vidro sujo,
embaçada esperança
que não se crê possível.

De tanto olhar pra dentro,
fiquei cega de futuro
E já não mais espero.

Ratos comem meus anseios,
fiz raízes nos porões
e me alimento
de seu abandono.

Angela Schnoor

Anima - pequenas histórias femininas 8

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma

Foto- bodyGünterMeindl


Conto 8
ESPERANÇA ?

Trabalhavam muito. Foram apresentadas quando ambas iniciavam atividades novas no ramo da moda, mas só se encontraram, verdadeiramente, tempos depois.

Maura tinha acabado um casamento difícil, do qual tinha uma linda filha adolescente. Sua maternidade era muito importante, embora estivesse um pouco ausente, já que, com a separação, assumira as funções do pai de Lia.

Duda era um pouco mais experiente em negócios. Solteira e independente por natureza, desde muito cedo pegara as rédeas de sua vida e já tinha se dedicado a várias atividades. No momento, sua modelagem e confecção de roupas de banho, lançava no mercado novidades sensacionalmente aprovadas pela crítica especializada.

Fazendo parte de um grande grupo de estilistas, a afinidade entre elas foi rápida e fácil e logo faziam desfiles em conjunto e se auxiliavam, trocando contatos e experiências práticas na administração dos negócios.

O ponto forte de uma era a conta certa para suprir a insegurança da outra.
Tornaram-se companheiras para tudo: festas, reuniões, amigos em comum.
As famílias se aproximaram, apoiando e torcendo para o sucesso de ambas.

A participação na educação da menina aumentava o elo entre elas pois Lia solicitava a presença de Duda para tudo aquilo que necessitava quando a mãe estava envolvida demais no trabalho.

Não demorou muito para que as invejosas línguas começassem a sua trama maligna no meio que freqüentavam
Paqueras inconvenientes, homens rejeitados por falta de tempo, cansaço ou incompatibilidades, viravam comentário como o sinal definitivo para o diagnóstico : elas tinham um caso!

Resolveram se afastar para evitar que algum mal fosse feito às suas carreiras e, principalmente à jovem, cujo pai já insinuava ameaças, tais como entrar na justiça, pedir a guarda da filha, etc.
Foi um período difícil, muito cinza, negro até...

O trabalho era muito e não rendia. Decisões tomadas sem o mútuo consenso, resultavam em complicações e fracasso. Os problemas se acumulavam, os “amigos interessados” ofereciam ajuda ofertando - se como sócios, conselheiros ou amantes circunstanciais.

Telefonavam-se às vezes, tarde da noite, só para ouvir um apoio sincero, um “agüenta que vai passar”. Eventualmente se encontravam em situações profissionais ou sociais, mas a reclusão tomou conta de suas vidas. Em meio a tudo isto, as solicitações da filha que pedia:- “mãe, quando vou ver tia Duda? Quando ela vai jantar de novo com a gente? Estou com tanta saudade! “

Um dia Maura liga: Lia está de férias, pensei em levá-la para um cruzeiro marítimo. Quer ir com a gente? Acho que também precisamos de um descanso, concorda? “
Ela não só concordava como desejava estar longe de tudo e todos, e precisava se reabastecer para pensar na nova coleção que teria que criar para o próximo verão.
“Fechado. Prepare as bagagens e vamos nós para longe... ao mar! “

A viagem estava maravilhosa, o tempo de luz e calor permitia passeios no convés e banhos de piscina. Conversavam longamente como antes, sem temores, estiradas nas espreguiçadeiras, olhando o horizonte.

Lia, em plena adolescência, alternava brincadeiras e correrias com os primeiros e tímidos olhares para um garoto que estava acompanhado dos pais.
Acabaram ficando amigas do casal. Eram jovens, simples e divertidos, tão diferentes de seus “amigos” emproados!

Conversavam, jogavam e faziam as refeições na mesma mesa. Parecia que a paz tinha voltado e quase já tinham esquecido os dias de pesadelo e a saudade que viveram na ausência prolongada.

Foi na hora do baile que a tristeza voltou.
A orquestra tocava musica romântica. Os casais dançavam, enlaçados. Seus novos amigos foram para a pista e Lia, pela primeira vez, convidada a dançar pelo jovem amigo deixou-as sozinhas à mesa.

De repente tudo ficou claro! Seus olhos se encontraram expressando o mesmo desejo e o amor, até então inconsciente, brotou como cachoeira. Sob a toalha da mesa, suas mãos se encontraram tímidas e apaixonadas. Como gostariam de dançar, como faziam os casais na pista, embaladas por este antigo-novo amor.
Um dia isto se tornará possível, pensavam... mas...será que ainda no seu tempo?... Haveria esperança para elas?


©Copyright ANGELA SCHNOOR


21.3.06

um saber maior

Existe um ditado oriental que diz:
Quando os deuses querem nos castigar, ouvem as nossas preces.
Difícilmente conseguimos ter uma visão tão límpida e sábia da existência que nos permita ver claro o que seria melhor para nós. Quase sempre pensamos que aquilo que é agradável e nos convém é o melhor e, nem sempre é assim.
Esta pequena história ilustra este pensamento.

Após um naufrágio, o único sobrevivente agradeceu a Deus por estar vivo e ter conseguido se agarrar a uma parte dos destroços para poder ficar boiando. Este homem foi parar em uma pequena ilha desabitada, fora de qualquer rota de navegação. E ele agradeceu novamente.

Com muita dificuldade e restos dos destroços, ele conseguiu montar um pequeno abrigo para que pudesse se proteger do sol, da chuva, de animais e também guardar seus poucos pertences. E, como sempre, agradeceu.

Nos dias seguintes, a cada alimento que conseguia caçar ou colher, ele agradecia. No entanto um dia, quando voltava da busca por alimentos, ele encontrou o seu abrigo em chamas, envolto em altas nuvens de fumaça. Terrivelmente desesperado, ele se revoltou.


Gritava chorando: "O pior aconteceu! Perdi tudo! Deus, por que fizeste isso comigo?"
Chorou tanto que adormeceu, profundamente cansado.

No dia seguinte bem cedo, foi despertado pelo som de um navio que se aproximava. - "Viemos resgatá-lo", disseram.

- "Como souberam que eu estava aqui?", perguntou ele.
- "Nós vimos o seu sinal de fumaça!"

É comum sentirmo-nos desencorajados e até mesmo desesperados, quando as coisas vão mal. Mas a sabedoria da vida age em nosso benefício, mesmo nos momentos de dor e sofrimento. É bom lembrar: Se algum dia nosso único abrigo estiver em chamas, esse pode ser o sinal de fumaça que fará chegar ate nós a Graça Divina.

desconheço o autor.


20.3.06

ARTE - para 125_azul


UM ESTRANHO PODER DE CURA

Trecho do discurso de aceitação do prêmio Nobel
de Kenzaburo Oe


“Meu filho deficiente mental, Hikari, foi despertado pela voz dos pássaros para a música de Bach e de Mozart e acabou produzindo suas próprias obras. As pequenas peças que ele, inicialmente compôs eram cheias de frescor e prazer. Pareciam gotas de orvalho brilhando sobre a relva. A palavra inocência é composta do prefixo” in”, que significa “não”, e de “nocere”, “ferir”. Ou seja, ela quer dizer “aquele que não fere”. A musica de Hikari era uma manifestação natural de sua própria inocência. Conforme ele passou a criar mais obras, no entanto, não pude deixar de ouvir nelas também, a voz de uma alma escura e atormentada. Apesar de deficiente, seus esforços extenuantes permitiram que ele melhorasse as suas técnicas de composição e aprofundasse suas concepções. E isso fez com que ele descobrisse, no fundo de seu coração, uma massa de tristeza que, até então, ele fora incapaz de expressar com palavras. O fato de expressa-la em musica, cura Hikari de sua tristeza, é um ato de recuperação. Mais ainda, seus ouvintes aceitaram essa musica como algo que também os fortalece e restaura. Nesses fenômenos, eu encontro as razões para acreditar no estranho poder curativo da Arte.”

(revista Veja edição 1792, ano 36- nº9 -, 5 de março de 2003, pág. 100 )

Anima - pequenas histórias femininas 7

Na maioria das mulheres as cicatrizes se encontram na alma.

foto de Jan Saudek - Tell Me, Mirror, 1978

Conto7
CORÉ

Na adolescência via a mãe, mulher forte e assexuada, trabalhando o dia todo para dar mais conforto à família enquanto o pai corria atrás das moças na rua e passava a mão sorrateira, nas curvas das jovens empregadas da casa.
Amedrontada e triste ela percebia tudo e daquele momento em diante preferiu, meio inconscientemente, não crescer nem envelhecer.


Ter uma profissão, nem pensar! Passava os dias em frente ao espelho, testando as ultimas modas em roupa e maquiagem, se esmerando nas técnicas para seduzir um homem, a fim de ser amada e protegida por ele.


Um dia casou, teve filhos, mas continuava a ser uma garotinha nos gestos, na forma de vestir e de pensar. Conforme o tempo passava, se aperfeiçoava na arte de envolver qualquer homem que dela se aproximasse.

O marido, bonachão e pouco dado ao trabalho, passava a maior parte do seu tempo na rua vivendo de expedientes, e fazia vista grossa aos casos da mulher que não deixava escapar nem os seus amigos. A predileção pelos homens mais velhos e casados era flagrante pois, provavelmente, isto a fazia mais segura de sua juventude e predicados femininos.
No íntimo, ela era infeliz, queria ser amada. Desejava um companheiro e
sentia-se sempre só, embora não conseguisse ficar um instante sem companhia. Até para ir às compras, ali na esquina, chamava alguma amiga, um filho ou a empregada.

Os filhos não respiravam sem ela, fazia tudo por eles contando que, desta forma, permaneceriam crianças, assegurando sua “juventude”.

Passada em anos continuava com seu modelo de menina beirando, quase sempre, o ridículo.

Separou-se do marido e então suas paqueras se tornaram mais abertas e já incluíam outras intenções. Os mais ricos eram os preferidos e não respeitava nem suas amigas que, aos poucos se afastavam quando percebiam os olhares lânguidos e pestanejantes atirados para seus maridos ou amantes.

Aos poucos foi ficando só. Um filho casou, outro foi estudar fora e a filha só vivia para o trabalho, temendo ficar como a mãe.

Um dia, numa festa, afastada dos grupos, ouviu um comentário: - “Como está velha!” Disse alguém.- “E ridícula,... continua a bancar a garotinha!”, completou outra voz.

Correu para o banheiro e então, se viu pela primeira vez! As lágrimas que escorriam, borrando a maquiagem, acentuavam ainda mais a verdade do que ouvira e via.

Caiu em depressão profunda. A morte chegou bem perto. Tiveram que interná-la por muito tempo.

Na clínica, aos poucos, foi melhorando.
Alem dos remédios e da psicoterapia fazia terapia ocupacional, através da qual acabou descobrindo habilidades artísticas desconhecidas. Este fato, além de apressar seu restabelecimento,abria perspectivas novas para um futuro trabalho e trouxe um sentido para sua vida.
Não mais temia o tempo e a morte.
Já conseguia ficar só e apreciava a própria companhia. A aparência também mudava: o cabelo, sem pintura, foi tomando sua cor cinza verdadeira e embelezava seu rosto, agora mais suave, com menos artifícios.

Um terapeuta acompanhava seu progresso e a ajudava no esforço de recuperação. Conversavam longas horas durante seu plantão.
Ele tinha a idade de seu filho e fazia residência na clínica, onde acompanhou seu caso desde o início.
Empenhou-se em seu tratamento com carinho e interesse desde o primeiro dia até aquele em que assinou sua alta.

A filha iria buscá-la. Arrumou-se, feliz, para voltar a casa. Vestia um terninho sóbrio e elegante, cor de terra, que realçava seus cabelos. Agora, os fios louros se misturavam aos grisalhos em discreta harmonia. Olhando-se no espelho, pela primeira vez gostava, realmente, do que via.

O jovem médico entra para despedir-se e não contem a admiração: “Como você está linda!”.
Trancando bruscamente a porta, lança-se, apaixonadamente, sobre ela que, entre surpresa e extasiada consegue, pela primeira vez, ter um orgasmo!


Copyright ANGELA SCHNOOR


18.3.06

A primavera do carneiro feliz!

Dia 20 de março - primavera no hemisfério Norte, outono ao Sul


A Natureza, que a tudo comanda, busca o equilíbrio. Os dias são temperados e as cores suaves preparam a Páscoa, o renascer da vida, a ressureição.

O Sol, doador da vida, inicia seu percurso pelo signo do carneiro, qualidade do impulso para um novo ciclo.

E a Lua, como sempre a parceira da Mãe Terra, é o ponto determinante dos calendários feitos pelo homem, mesmo que questões de interesse e preconceito possam ter deslocado a Lua Cheia do Céu para uma falsa Lua "eclesiástica" criada em 1582, pela Igreja, com o calendário Gregoriano afastando da natureza o já tão festejado domingo da ressureição das festas pagãs.

O primeiro domingo após a Lua cheia que acontece depois do equinócio do Sol em Áries - o carneiro, é Páscoa. Esta parceria do Sol e da Lua é o que determina as festas como o carnaval e a quaresma, a Páscoa e todas as demais.

Que todos possam sentir a força masculina e Solar para recomeçar e o encanto da preparação suave que a Natureza proporciona, tanto aos filhos do Norte como aos do Sul.


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para Melga, um desenho bobinho

Melguinha, só pra brincar com você. Com carinho, um rabisco às pressas.
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